AO PIANO...

Ao Piano...

J.B.Xavier

A partitura à minha frente emitia uma musicalidade dura como minha própria realidade. Fusas e semi-fusas ricocheteavam confusas por meus dedos cansados... colcheias e semi-colcheias transbordavam do papel, a quem eu tentava ser fiel, mesmo sem nada sentir...no descompasso dos repetidos compassos, de repente, um sustenido! Não, isso não faz sentido! Parei desanimado àquela mecânica execução e soltei o pensamento, em busca de uma fagulha de emoção. Deus! Só mais uma vez, dá-me uma fagulha de inspiração...Então silenciei todas as minhas feras e tentei ouvir o som do silêncio... e após a eternidade de um instante sagrado, timidamente, uma nota chegou-se de mansinho...uma nota triste de uma música distante...Veio se aconchegando carinhosamente e pingou sobre meu coração. Lentamente passeou solta por meu espírito. Explorando minhas expectativas, beijou suavemente meus desejos mais ocultos e envolveu de ternura meus mais recônditos pensamentos... esvoaçou pelo espaço imenso de minha alma , à procura de um sol que não existia...entristecida, aspirou profundamente a vida que de mim se esvaía, e soprou-a gentilmente na desordem de meu interior...pude sentir o hálito quente do amor que o tempo há muito corrompera, pude lembrar da dor que dissolvera todas as minhas esperanças, e, feliz, retornar aos alegres tempos de criança, onde, nas ensolaradas tardes amenas, o vento acariciava meus cabelos... Mas, a porta de minha alma permanecera escancarada, e outra nota a seguiu e outra mais! E outra ainda passou também pela porta não fechada. Felizes com a descoberta, muitas notas as seguiram pela porta entreaberta. No cenário de tristezas de meus mais remotos pensamentos, seguiram essas notas, já tristes e conformadas, a iluminar meus mais opacos sentimentos. Acariciaram minhas dúvidas, aplacaram minhas impaciências e todos os ventos que formavam minhas tempestades. Trouxeram calma ao meu interior. Assumidas em um lamento, deixaram-se docilmente deslizar para o restante de mim... e fluíram assim, no incandescente rio de lava de meus furiosos vulcões interiores. No caminho, foram lembrando dos amores, aqueles que perdi, outros que apenas sonhei; dos lábios que tão avidamente beijei. Indescritíveis hinos de amor entoaram durante essa viagem, melodias angelicais, sons de distantes sinos, imagens, imagens, imagens, loucos caleidoscópios coloriram rápidos o vórtice do pensamento, torreões iluminados, poemas inacabados, amizades esquecidas, amores não cultivados...depois, calmamente, seguiram nesse fluxo benfazejo, e ainda levando consigo o gosto doce de um beijo, afloraram em meus olhos como lágrimas cintilantes...Vacilaram nas alturas por instantes e lentamente desprenderam-se no espaço. Caíram sobre minha mão, de onde, após dançarem lentamente pelo teclado, ao som de cada compasso, como uma triste melodia, retornaram novamente ao meu coração.

Com os olhos ainda marejados, comecei a dedilhar uma canção...

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JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 22/09/2005
Reeditado em 10/03/2019
Código do texto: T52844
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