O Socavão
Fui criada num sobrado que tinha dois andares, duas escadarias, um sótão e dois socavões, além de um grande quintal que "encolheu" quando fiquei adulta. Mas é dos Socavões que vou falar. O socavão é uma espécie de cafua, um compartimento escuro muito usado nos colégios antigos para castigo dos alunos. Porém, o socavão da minha casa era apenas um lugar onde se guardava ou depositava coisas que não tinham mais serventia e eram jogadas ali enquanto não fossem descartadas de vez. Quando a traquinagem da criançada passava dos limites, recebíamos ameaças tipo " se teimar vou botar no socavão". E todos os irmãos tinham medo deste castigo que nunca se concretizou. O socavão quase sempre estava fechado. Como se não bastasse um, tínhamos dois, o de baixo e o de cima. O de baixo ficava num vão abaixo da escadaria de madeira que dava para o sótão, este tinha três grandes quartos onde dormia a criançada. O socavão de baixo se comunicava com o quarto de minha avó através de uma porta pequena, que para entrar era necessário se abaixar ou se curvar, a depender do tamanho de cada pessoa, mas uma criança pequena poderia entrar em pé. O socavão do sótão se comunicava com o último quarto através de uma portinha menor que a outra, formando um vão entre o piso de madeira, e a parte do telhado do sobrado em cima. Apenas o pedreiro poderia entrar nesse socavão caso alguma telha estivesse precisando de trocar. Era mais claro e mais limpo que o outro e só se podia pisar nele com bastante cuidado, para não ceder o soalho sobre a sala de visitas embaixo.
Um belo dia esqueceram o socavão do andar de baixo aberto e, eu ainda bem pequena, fui curiosamente espiar o que tinha dentro. Foi então que um de meus irmãos, já maior, fechou a porta. Nunca me esqueci daquele breu que se formou na minha frente, acho até que foi o próprio que abriu a porta propositadamente. Quando comecei a gritar ele me deixou sair, senão ele é que iria pro castigo. Fiquei parada na porta espiando o vão escuro cheio de tralhas, que deveriam ser bem mais velhas que eu na época. Pé de cadeira, esteira, gaiola, banco, cabeceira velha de berço, e até penico, que minha avó chamava de urinó, tudo amontoado. Depois deste episódio não mais me interessei em espiar o socavão e nem chegava muito perto. Mas continuei com toda aquela tralha na cabeça até adulta. De vez em quando , sempre que tenho algo sem serventia, não só no plano material como no espiritual, lembro desses socavões. Tudo que me incomoda empurro para o socavão da vida, tranco, aguardo uns tempos, e se não valer a pena me desfaço. Ou piso com cuidado,quando quero evitar um desmoronamento de teto.