Casamento no Uruguai
De repente, sem ensaio, sem nada, a criançada saiu da sala, passou pela copa e, da cozinha, começou a atirar os discos pela janela do terreiro, gargalhando de felicidade ao ver os discos se quebrarem contra o velho abacateiro do quintal. Nisso aí, democraticamente, discos de cantores e orquestras como Pedro Raimundo, Marion, Beniamino Gigli, Mário Lanza, Luiz Gonzaga, Ray Coniff, Românticos de Cuba e outros encontravam o mesmo fim: viravam cacos ao pé do abacateiro.
Esse abacateiro, ponto inocente de choque, pouco tempo depois, foi punido, sem aviso prévio, sem direito a defesa, tempos de ditadura. Cortaram-lhe o tronco, separaram-lhe alguns galhos, mas por algumas semanas, até se completar seu desmantelamento, a estrutura restante serviu para a meninada viajar de navio pelo mundo. Antes de virar lenha serviu à fértil imaginação da criançada. Pode-se dizer que teve um nobre final.
A febre de destruição na casa, porém, era uma anarquia consentida. Sem qualquer oposição dos adultos, as crianças leram a mensagem subliminar: os discos 78 eram o passado. Na sala de visitas reformada, tacos raspados e cuidadosamente encerados, os pais se deliciavam com a eletrola nova. Era de pau-marfim, comprada na loja do Marcondes Machado. Passavam o sábado escutando as coleções de "long-playing", os famosos " lps" trazidos pelo correio, acondicionados em caixas delicadas, cheirando a novo. Estava se iniciando em Pitangui a hegemonia dos discos de 33 e 45 rotações, hegemonia que iria durar até a chegada dos cds, nos anos 90. Era o sinal dado para que os pesados discos de 78 rotações, fabricados com cera de carnaúba, fossem sacrificados para sempre.
Um dos meninos, no entanto, ficou triste. Havia um disco de um amigo de seu pai que também tinha entrado naquela dança maluca. Um disco de um pitanguiense, conhecido da família, dado de presente, com dedicatória e tudo. Foi um descuido paterno, evidentemente. Tinha que estar separado dos outros. Mas não estava, jaziam nos pés do abacateiro os seus cacos irrecuperáveis. O pai ia se zangar de verdade, porque era o disco do Patesko. Chamava-se " Casamento no Uruguai", marchinha avançadinha para os meios conservadores de Pitangui na época. Mas fazia sucesso no carnaval.
De boa memória, o menino reconstruiu, pelo menos, a letra, já que os caquinhos não serviam para nada:
"Tenho mulher sou até pai
Mas pego outra e vou casar lá no Uruguai.
Eu quero ser igual sultão,
Juntar mulher como se junta tostão.
Quero mulher grande ou pequena
Seja rica ou seja pobre, seja loura ou morena
Mas ai! Há um perigo:
Em cada mulher nova sogra eu consigo."
O disco se espatifou, desapareceu, mas o menino reconstruiu a letra da música do amigo de seu pai. Quem sabe, um dia, vai encontrar, de novo aquele 78 rotações voltando do passado.
(Homenagem a Patesko, José Nunes de Oliveira, um dos maiores compositores de Minas Gerais)