"Varal Literário" - Crônica Dois
A Secretaria da Educação do Governo lançou um concurso de poesias na rede escolar e eu fui incumbida pela direção da escola de orientar as crianças do projeto a produzirem os poemas.
Uma vez que o tema do concurso era "O Lugar Onde Moro", saí com eles para uma volta pelo bairro, para "inspirá-los" na criação de suas poesias.
Enquanto caminhávamos, as crianças formaram grupinhos em conversas. Junto de mim caminhava uns três alunos que iam contando-me curiosidades sobre o lugar e seus moradores.
A certa altura uma das crianças, um menino de dez anos, com um talento especial para escrever poesias, e com os cabelos tão lisos que permaneciam sempre espetados, disse numa voz de quem fala para si mesmo com tristeza:
- É prô... já sofri muito nessa minha vida...
- Que é isso, garoto? Você só tem dez anos.
- É... mas já sofri muito. Agora tá melhor. Mas, já sofri, viu?
- O que aconteceu pra você sofrer tanto assim?
- Primeiro que meu pai não gosta de mim.
- Por que você acha isso?
- Ele disse.
- Ele disse isso pra você?
- Disse. Ele não gosta de mim porque eu sou preto.
- Mas você não é preto...
- Sou sim. Minha irmãzinha é bem branquinha, perto dela sou preto. Meu pai um dia chegou bêbado em casa e brigando com a minha mãe botou eu pra fora. E era de noite! Ele falou: "Sai daqui, moleque, que eu não gosto de preto!"
- E o que você fez?
- Fiquei sentado debaixo de uma árvore, com muito medo porque estava escuro e chovendo.
- E sua mãe não fez nada?
- Depois que meu pai bateu nela e foi dormir, ela foi me buscar e eu entrei bem quietinho pra ele não acordar. Mas isso já faz tempo...
- Já faz tempo... e você só tem dez anos. Seu pai ainda faz essas coisas?
- Agora não, porque graças a Deus ele está preso.
- É mesmo?!
- É. Tomara que ele fique bastante tempo lá. Bem que podia ficar pra sempre.
- O que ele fez pra ser preso?
- Matou a mãe do meu melhor e único amigo.
- Meu Deus! Por causa de que ele fez isso?
- Por causa de dois reais.
- O quê?! Como assim?
- Meu pai tinha um bar, ela bebia todos os dias lá. Ficou devendo dois reais. Quando meu pai cobrou ela, ela começou a xingar meu pai. Aí ele pegou uma faca e matou ela ali mesmo.
- Nossa... que mal...
- Foi bom, prô! Agora minha vida está bem melhor.
- Sua mãe é legal pra você?
- É. às vezes eu apanho, mas acho que é porque eu mereço.
- Sua mãe casou de novo?
- Não! Ela só trabalha e vai na igreja.
- Sei. Você é muito organizado e inteligente. Já sabe o que quer ser quando crescer?
- Escritor.