DESCONSTRUÇÃO

Um dia percebi que eu era uma belíssima mansão,mas minha alma habitava apenas a edícula.

Havia tantos cômodos na casa da frente,mas nunca consegui vê-los como espaços a serem desfrutados,senão como lugares a mais a serem sujos e empoeirados, que a mim caberia limpar, a contragosto.

Assim,passava a vida na parte de trás,onde me sentia segura e amparada,fosse pela pequena distância entre uma coisa e outra,fosse pela familiaridade com as mesmas.

Até que,do nada ou por algo que vi,ouvi e não consigo mais recordar,resolvi enfrentar aqueles enormes espaços,tão vazios,que chegavam a amedrontar,daquela casa imensa.

Não sei exatamente o que pensei,nem como tomei a decisão,mas senti ímpetos de reformá-la.Sim,reformá-la.

Talvez a melhor solução fosse vender.Uma boa casa,bem situada,com boa estrutura...Definitivamente tudo que eu queria nesse sentido,possuía, mas não usufruia.

E assim pensando,comecei a tentar me dar conta do que a afastava de mim.

Lógico que a primeira coisa que me ocorreu,foi a falta de familiaridade.Só a conhecendo bem,poderia notar o que nela me desgostava.

E com firme decisão,passei a visitá-la quase todos os dias em horários variados,e percebi cantos e cubículos inúteis,cujas paredes,se derrubadas,além de darem maior amplidão ao outro cômodo,deixariam a luz do sol entrar,criando um espaço mais claro e aconchegante.

Assustei - me,no final,ao constatar,quantos desses cubículos existiam na casa grande;uns maiores,outros menores,uns com minúsculas janelas e outros totalmente sem elas ou com madeiras a escondê - las.

Tentei visualizar a casa sem eles,e mental e vagarosamente;fui derrubando uma a uma,cada parede que aprisionava o sol,o ar fresco e a vista do exterior.Caminhava calmamente,parando em cada local que me parecia mal colocado ou dissociado do todo;sentava - me no chão e pensava o poderia ser feito ou retirado,para satisfazer - me totalmente,quanto a estética,aconchego e iluminação.

Vi,com certa apreensão quão difícil seria,lidar com a desconstrução : barulho,poeira,movimentação de pessoas as quais não estava acostumada,e ainda o risco grosseiro de que após tanto trabalho,investimentos e contratempos,ainda ela não se transformasse no que eu havia idealizado.

Num rompante de coragem,comecei a desconstrução,a princípio com raiva de sair de meu conforto,porisso envolvi neste começo apenas pessoas que me eram íntimas,mas ao notar,devo dizer,com certo agrado,os resultados das partes já transformadas,liberei a ajuda de todos que se ofereciam e comecei a fazer muitos amigos.

Passei a sentir um enorme prazer,a cada marretada,que derrubando partes dos tijolos,me permitiam novas perspectivas.

O prazer inusitado,dos primeiros resultados,levou-me,sem que me desse conta,totalmente sem dor,para o amor.Passei a amar aquela desconstrução porque só através dela,consegui derrubar um modelo que havia - me sido imposto,e criar algo que fosse meu,do meu gosto,ampliando as zonas do meu bem estar.

Tenho que confessar que nem tudo que imaginei pude fazer.Tinham paredes que eram estruturais e porisso não poderiam vir a solo.Nestes casos,aliás extremamente frustrantes,esforçava - me por soluções alternativas.Poderia não ser bem o que eu queria,mas definitivamente não permitiria que continuasse igual.E nesses momentos notava com satisfação,quantas possibilidades tinha a minha frente;possibilidades estas,que se eu conseguisse me desprender ainda mais, das minhas inúteis necessidades de segurança,das minhas retógradas idéias preconcebidas, se duplicariam.

De repente percebi,que tinha pouco a pouco,deixado de de habitar a acanhada edícula e passado assumidamente a ser a mansão.

Tomada por um crescente frenesi,busquei então pelos melhores profissionais,li os melhores livros,ouvi muitas pessoas cultas,algumas até sábias,elaborei idéias,criei teorias e comprovei teses.

Os cubículos...Quem teria tido a idéia de colocá - los em espaços amplos e alegres,de modo a toldar toda beleza que seria vista,se eles não existissem?

Então percebi,que uns me foram deixado por herança dos pais,em momentos de desesperança,outros construídos por pessoas que me decepcionaram,outros,pelas que eu havia decepcionado e outros,embora já tivesse me esquecido,por mim mesma,para me esconder do que não aceitava,acreditava ou não tinha controle.Um esconderijo selvagem para selvagens sentimentos.

Este lapso não me deixou perceber que a inveja,o ciúme e o desamor,que algumas pessoas me direcionavam,me afastavam de quem eu era,tiravam minha alegria e prazer de viver ,minha vontade de ser e fazer acontecer,para que arrasada,permissivamente legasse a dor e a tristeza,a autorização para que construissem muros, colocassem tapumes,fechassem entradas e criassem um ambiente inóspito a mim e a quem se aproximava.

Mas a paisagem que agora eu podia vislumbrar...tudo aquilo que minha vista alcançava,também era eu e era linda.

Isto me animou,a ser audaciosa porque despertou em mim,a motivação para ser mais.O calor do sol,aquecendo meu corpo,manteve acesa a luz da esperança de ser melhor e me deu forças para desconstruir as mágoas e os desafetos;superar frustrações e aceitar o que não conseguia enxergar na antiga escuridão.

Andando pelo meu passado,por dentro de mim,perdoei até que com muito carinho,os que não puderam me amar, e de certa forma amei,ainda que em preces,aqueles com quem eu não pude nem poderia conviver...Agradeci aos meus antepassados a honra de pertencer a sua linhagem,aos meus filhos pela oportunidade de virem até mim para que eu pudesse ensiná - los e pudesse aprender com eles e num insight compreendi como todos nós estamos correlacionados.

Paradoxalmente,percebi que só cresci desconstruindo,porque só se cresce quando se tem idéias próprias,quando se faz escolhas inteligentes e quando se tem por companhia, pessoas interessantes.

Todos recebemos uma herança física,da qual devemos ser apenas guardiões,pois não tendo sido acumuladas por nós,a nós não pertence.Dela somos apenas cuidadores para que um dia chegue a quem de direito.

Mas recebemos uma herança maior,a espiritual,que embora repleta de boas intenções,carrega também muitos erros e muita carga negativa,que se não percebidos a tempo,concorre para nossa involução.Esta passaremos e repassaremos de mão em mão,a cada geração e é dever de cada um,não apenas manter,mas principalmente reformar o que reformará os seres humanos,tornando - os melhores.

Agora que acabou a reforma da casa da frente,deixei a edícula,como um posto de triagem,onde descarrego mercadorias,com as quais não sei lidar de prima,mas não deixo mais que se acumulem.Estudo e se for o caso uso,ou devolvo por falta de interesse ou de poder.Algumas permanecem alguns dias,outras alguns meses,até que eu esteja apta a deixar que partam,sem sentir dor,nem rancor.As que me interessam não ficam mais que segundos,porque arrumei uma obrigação que estou adorando.

Seguindo as leis naturais dos acontecimentos,desconstruí primeiro o feio,o mal e desfiz os entraves ;depois reconstruí o bom,o bem,o belo e o acessível.

Agora estou numa fase avançada, porque faz menos sujeira,envolve menos trabalhadores;talvez até um pouco mais interessante,mas nem um pouco mais fácil.Iniciei meio que conturbadamente, a decoração de mim,porque sabendo o que eu quero,não estou fazendo um cômodo e terminando;faço tudo ao mesmo tempo,conforme as coisas vão entrando em minha vida.

Muitas vezes preciso de amor,mas acabo me deparando com a necessidade de dar ou receber perdão; outras vezes,em busca deste,acho uma explicação para as ausências,para as displicências, para as maldades Em outras,pensando nestas mazelas,me defronto com a fé,que se faz acompanhar pela caridade e é sempre seguida por várias oportunidades. Gentilmente passeio por mim,orgulhosa das minhas conquistas,da troca dos cantos obscuros,moradias do meu inconsciente e das minhas inaceitações e inabilidades,por reluzentes gentilezas,lealdades e outras tantas características que me trouxeram de volta a dignidade.

Nada mais temo;não tenho tudo,mas deixei de nada ter.

Sou uma mansão grandiosa,posso ser luz,posso ser ar,água e espaço,mas posso também,ainda que inadvertidamente,causar dores e despertar rancores,mas isto nada é se se considerar que ao desconstruir meus maus princípios,edifiquei - me em gratidão. (eu)