Sobre madrugadores e minhocas


Quatro da manhã. 

Dou um salto da cama, escravo da autonomia profissional por que tanto lutei na época em que batia cartão de ponto e esperneava nas mãos de chefes e subchefes. Agora ninguém fiscaliza diretamente o que faço, mas como prestador de serviços tenho de obedecer a prazos e acautelar-me contra o espectro do vermelho que ronda a minha conta bancária. Se de tempos em tempos não obrigar-me a horários tão desagradáveis assim, para agilizar uma ou outra coisa, vou pro brejo.

Tento consolar-me com Mark Twain: “Levante-se cedo, pois o passarinho que acorda cedo é o que pega a minhoca.” Hoje, no meu caso específico, a minhoca é rematar o quanto antes a tradução de um conto de Maupassant e enviá-la por e-mail à editora. Acabo de fazer isso. Deu tudo certo. Minhoca no papo.

Mas tenham cuidado com o provérbio. Embora de sua própria autoria, o nosso Twain tachava-o de absurdo. Conta que um amigo seu, entusiasmado com a lição de sabedoria daquelas palavras, “levantou-se ao amanhecer e foi mordido por um cavalo”.

Acham que o criador de Tom Sawyer estragou com esse final o que parecia tão supimpa? Quem leu o diálogo Fedro, de Platão, deve lembrar-se que Sócrates, depois de um longo e aparentemente bem-fundamentado discurso, foi capaz de fazer a sua palinódia, ou seja, outro discurso, igualmente bem-resolvido, em que contraditava tudo o que afirmara no primeiro. Coisas da dialética, de habilidade dialética, para o bem ou para o mal, segundo se tenha ou não vergonha na cara. Como se vê, a palavra de Mark Twain não deixa de ser um provérbio palinódico, bem ao estilo do excelente humorista, e o dorminhoco que se vire.

Outra boa minhoca para quando acordo muito cedo são os meus passeios pelo bairro. Visto o velho jogging verde-meleca (o snotgreen joyciano), enfio no bolso alguns trocados para o cafezinho e a água mineral, e saio em pleno escuro. Evito as imediações do rio Tingüi, onde nunca se está inteiramente livre de um mau encontro nessas horas, e sigo para os lados do nosso boulevard. São oito quarteirões de sobrados e comércio chinfrim entre a igreja católica e a estação ferroviária, com três praças ao longo do trajeto arborizado. Uma grande pena que o tivessem batizado só como avenida e nome de militar famoso. Merecia coisa melhor, mais poética. Boulevard dos Tamarindos, por exemplo.

E uma terceira minhoca para o cronista madrugador é a Miloca (parece até mentira), uma negona linda que todos os dias úteis pega o primeiro 378 para a entrada da Ilha do Governador, às quatro e meia da manhã. Trabalha no Aeroporto Tom Jobim, e pelo rigor do horário esse avião não atrasa nunca. Dá gosto zanzar pela praça da igreja quando ela surge da esquina da rua Gravatá com o seu inconfundível balanço cabinda.

Bastam essas minhocas por hoje. Fui.


[17.6.2007]