Dão
No meu timinho de futebol, desses que cada rua tem um quando se é garoto, havia um menino chamado "Dão", para nós pelo menos , pois "Roldão" nos parecia difícil de lembrar, e me lembro bem desse coleguinha, pois era diferente dos demais.
"Dão" tinha limitações intelectuais e motora, ainda que leve, e por isso estudava em uma classe especial, de uma escola pública, segundo ele mesmo nos disse, sem nenhum constrangimento, pois convivia bem com isso, e de certa forma um dia todos se alcançam.
Era filho único, e morava no comecinho da nossa rua, casa de esquina com grande terreno, onde às vezes batíamos bola. Era de família humilde, notava-se, cujo pai pouco conhecíamos, não parava em casa, coisas de caminhão. Já a mãe, estava quase sempre nos afazeres de casa, e era quem cuidava desse filho.
Normalmente era eu quem juntava a turma para o campinho, para os jogos combinados com os moleques das ruas de baixo, e determinava a posição de cada "atleta" , distribuindo orientações de acordo com o adversário do dia, sem chiadeira, porque se deixar bagunçar não sai nada. Conhecia bem os garotos do bairro, e isso me facilitava , para eles nosso timinho era o time do "Pepe" ( eu).
Éramos na verdade meia dúzia de gatos pingados, juntado as pressas, indo chamá-los de casa em casa, quase sempre os mesmos, e os que estavam disponíveis, segundo as suas mães.
O meu amigo "Dão" era o mais fortinho, e também o mais desengonçado, e por isso eu o plantava lá atrás, como becão, com a orientação de que se a coisa complicasse, "bola pro mato", nada de tentar enfeitar, o que seguia com obediência invejável. Enquanto lhe falava, me olhava firme para não perder um detalhe, sempre com aquele leve tremor na cabeça, que não parava por completo, ( sintoma neurológico), e aquele nariz que vivia escorrendo, que limpava na manga recolhida com a ponta dos dedos.
De longe era o mais fácil de lidar, o menos reclamão, e nunca brigava, mas também o mais desligado de todos, e de tanto ir a casa, a minha mãe já simpatizava com ele, e lhe oferecia bolo e Nescau, que educadamente aceitava, notava-se que se empenhava na educação, apesar de tão desajeitado, pois sempre colocava os botões de forma que pareciam, sobrar botões e faltar casas, braguilha aberta e sapatos desamarrados eram comuns para ele, a gente tinha que dar um toque. Muitas vezes enquanto os demais garotos conversavam, e riam com as piadas, parecia que a conclusão lhe escapava, e perguntava porque disso ou daquilo, e nem sempre lhe explicávamos, era melhor deixar pra lá, e assim ficava , sem entender.
Sempre o tratei de forma igual, embora tivesse a consciência de que era especial, e ao meu jeito o fazia ser aceito por todos, o que era fácil, pois todos gostavam dele, e embora alguns às vezes debochassem, eu nunca permitia um exagero, e assim foi indo, e cada vez que ele marcava um gol, eu vibrava com ele, o fazia se sentir importante, e depois comentava o lance na frente de todos , e quando errava o lance, falava com jeito, para que grudasse no atacante , e não o deixasse avançar .
Acho que a mãe do " Dão" percebia tudo aquilo, e depositava muita confiança nos meninos da rua, pois nunca percebera um zelo maior da sua parte, possivelmente o ajudava a evoluir, essa integração era saudável para o seu filho. Tudo era muito natural na verdade, para nós ele era mais jogador do time.
Certa vez fomos jogar com a turma do " Adriano", quatro quadras pra baixo da nossa, filho do dono da padaria, e numa das laterais do campo havia um barranco alto e acidentado, de quase dez metros, e o "Dão" que sempre jogava descalço, deixou os sapatos por lá, num cantinho, e em certa ocasião do jogo, o tal do "Adriano", pegou um dos pés e arremessou lá pro alto, o que fez o jogo parar, e o "Dão" ficar desorientado e choroso, como nunca vira, então me veio o senso de justiça e o cuidado com o meu jogador, me fazendo pagar na mesma moeda, e arremessei o sapato do "Adriano" também, fazendo a partida acabar definitivamente. O caldo engrossou, pois o garoto era mais forte que eu, e sabia brigar, o que nunca aprendi muito bem, mas não poderia deixar as coisas ficarem de graça, aquilo havia sido muito injusto e desnecessário, ele havia feito isso porque sabia que o nosso amiguinho era diferente, o que piorava tudo.
"Adriano" na minha frente com os punhos erguidos, e a molecada nos rodeando sem interferir, e a única arma que tinha na verdade eram os argumentos, e comecei a persuadir os outros do time dele, dizendo que aquilo deixava tudo por igual, que ambos tinham o mesmo direito ao respeito, e que desse jeito nunca mais iríamos jogar bola com eles, que não sabiam perder sem apelar, e aos poucos os outros meninos, que já nos conheciam, começaram o "deixa disso", e acabamos marcando novo encontro para terminar a peleja. No meio disso tudo os sapatos já haviam aparecidos, e no caminho para a nossa rua, notei a gratidão do "Dão", que se tornou ainda mais amigo, e o respeito dos demais meninos, entre eles o "Zeca", que veio a se tornar um grande cineasta "Jose Antônio Garcia", garoto alegre e divertido, e que merece uma história futura.
Com o tempo e a adolescência nos alcançando, começamos a ir aos bailinhos de garagem, e o " Dão", já mais arrumadinho, também nos acompanhava, e tirava as meninas pra dançar coladinho, mesmo sem muita cintura para a dança, não decepcionava.
Como tudo passa, um dia tivemos que nos mudar de bairro, o meu pai alugara uma casa melhorzinha, e assim tive que deixar cumprido mais este capítulo de saudade. Nunca mais soube do "Dão", se está bem, se guarda estas recordações como eu as guardo, se um dia se formou, se melhorou de saúde, se também teve esposa e filhos, e uma vida normal, se é feliz...Espero , de todo o coração, que a vida lhe tenha sido justa, e lhe tenha reservado bons momentos, pois na verdade é isso que sempre temos, bons momentos.