Ilustração: Tijolinho de barro, na forma de caixa de fósforos, brincadeira dos meus tempos de criança
Esta é uma lembrança dos primos e primas com quem fui criado, que me ajudaram a superar a ausência de irmãos e a amenizar a extremada vigilância de minha mãe.
Nascido e criado até os 8 anos no bairro operário da Vila Nova, numa casa grande com quintal, eu, filho único, convivi com uma imensidão de primos. No texto a seguir, eu conto uma de nossas brincadeiras favoritas.
A Construção
Para Miguel e Dinho, que construíram minha casa, e por essa época já eram os melhores pedreiros que eu jamais conheci.
Num outro dia, a Neli estava no terreiro, próxima da cerca de bambus e do quarador, com uma bacia de roupa torcida arrimada à cadeira, e o Guima se distraía sozinho, trabalhando na “construção”, perto do tanque de lavar roupa, do qual jorrava a água que formava um reguinho, que passava pela plantação de verduras, que escorria por entre os pés das árvores de frutas, que umedecia o lado das touças de bananeiras, dos ora-pro-nóbis, das taiobas, dos inhames, que corria pro fundo da horta, que caía numa vala da Rua de Baixo, que despinguelava morro abaixo até cair no Córrego dos Lobos.
A obra: uma casinha. Os materiais aprontados pela turma: tijolinhos feitos de barro, moldados em caixas de fósforos e queimados ao sol; cacos de telha; palitos de picolé; uma velha vara de pescar de cana-da-índia; tampinhas de garrafas; pedaços de vidro, água; terra; areia. Uma colher velha e uma faca sem ponta serviam de ferramentas.
Tijolinhos de barro moldados em caixa de fósforo
Quando o Miguel chegou pra ajudar, o Guima foi logo dando ordens, como era de seu feitio:
— Eu sou o pedreiro e ocê é o servente. Eu já comecei o trabalho e ocê ‘stá atrasado. Vou descontar meio dia.
— Descontar do quê, se eu nunca recebo nada, disse o Miguel.
— Eu já ajudei ontem a fazer os tijolinhos. E foi um dia inteiro...
— Dessa vez eu vou pagar, eu juro. Vem ajudar!
Guima e Miguel na Toca dos Lobos, na varanda de casa de tijolos à vista
A base da casa já estava pronta. Era preciso correr com as paredes e deixar tudo respaldado antes do almoço pra descansar um pouco e depois pegar no telhado, que essa era tarefa pra carapina e carapina bão andava raleando, os tios viviam comentando isso.
E as ordens se sucediam: — Faz barro, dá tijolo, me passa a colher. Anda, Miguel, cê tá pamonha demais hoje, sô! E a obra subia, cada vez mais bela. Então, os construtores se afastavam um pouco, que era pro sol bater e secar o barro e firmar as paredes. E diziam pras outras crianças que espiavam de longe, pois perto num podiam nem chegar:
— Olha que beleza! Parece até casa do seu Dante Gregatti que o tio Messias mais o tio Rubens e o tio Mário ‘stão construindo. Olha bem, num parece?
Casa do seu Dante Gregatti, em Lambari, construída nos anos 1960 pelos meus tios
E se admiravam da própria obra, encantados, com um sorriso iluminando os rostinhos sujos e suados. “A gente quer ver de perto, quer ajudar a fazer” — as demais crianças lamuriavam. Se deixasse, seria aquele avança e, por isso, lá vinha o Toninho* com as regras:
— Só depois de pronta. Aí, ocês pode chegar e brincar. Por que num vão catar material pro jardinzinho da casa e pondo encarriado aqui perto da obra? Vem só o Dinho ajudar, que ele já pode ir aprendendo o ofício.
Pronta a primeira parte, chega a hora do almoço.
— Sai, Piloto, não pisa aí, que estraga os tijolos. Mas ninguém ajuda a segurar o cachorro, gente! — o Guima reclamou com a turma.
Agora o telhado. As peças maiores saíam da parte mais grossa da vara de cana-da-índia. Os galhos mais finos viravam caibros, as ripas eram de palitos de picolé. E escora com caquinhos e entalisca com toquinho e cola com barro e amarra com embira e trança os palitos que ajuda a prender. Obra de paciência, de jeito, só um pode pôr a mão. Quem? O Guima, que esse trabalho ele não deixava ninguém fazer, que era tarefa pra oficial bem caprichoso. Já as telhas, não. O Miguel era servente, nem meia-colher num era, mas podia ajudar, desde que seguisse direitinho as orientações:
— Leva a mão devagar, põe mais barro, esse caco tá feio, põe outro, na cumeeira, bota os pedacinhos do mesmo tamanho...
E pela tardinha a casa já ‘stava toda levantada e coberta. Mas o dia acabou e a obra não ficara pronta. Olha só o tantão que faltava: construir o muro, fazer o passeio da frente, preparar o jardim, plantar a graminha e as arvinhas da horta. Mais o acabamento, e essa parte era a mais demorada, o Guima sabia disso, aprendera com o tio Messias, o tio mais velho que ensinava todomundo a construir. Mas ia anoitecer, então tinha precisão de cobrir a casa com folha de bananeira, por causa da chuva que já ameaçava na serra, que essa danada é uma desgraça para quem está construindo, pois pode pôr a serviceira toda a perder e o prejuízo vai ser grande.
— E prende o Piloto, por causa que ainda não secou direito, senão de noite ele derruba tudo só com uma rabada! — foi a última ordem do menino.
Vocabulário de Aguinhas
Arrimar: Encostar, apoiar, escorar.
Cadeira: Corruptela de cadeiras = Ancas, quadris.
Carapina: Carpinteiro.
Despinguelar: Descer morro abaixo. [Gíria ocorrente em Aguinhas.]
Encarriar: Corruptela de encarrilhar. Dispor ao lado, ou atrás, de forma bem arrumada.
Meia-colher: Apendiz de pedreiro
Pamonha: Pessoa molenga, preguiçosa, inerte.
Quarador: Piso de cimento ou tábua onde se põe a roupa lavada para corar; CORADOURO.
Respaldar: (1) Tornar plano ou liso (um caminho, uma parede, um terreno) (2) Levantar uma parede até o ponto de apoio da laje e/ou do telhado.
Todomundo: Todo
* Toninho: Minha família do lado dos GENTIL LOBO me chamavam de Toninho
(**) Este trecho faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a coletânea HISTÓRIAS DE ÁGUINHAS. V. o tópico Livros à Venda.
Ref. Foto: googlemaps