Em seu quarto
 
Esta noite eu voltei ao seu quarto; já estava cansado de perambular insone pela casa e, ao ver que existia uma luz acesa, entrei - era a luz do abajur, um ursinho de pelúcia segurando uma sombrinha que eu trouxe de presente especialmente para você, de uma de minhas viagens, que continua sendo aceso todas as noites, à cabeceira de sua cama.

Você não gostava de dormir no escuro e, às vezes, após rezarmos e ganhar o seu último beijo do dia, julgando que você já estivesse dormindo, eu o apagava, com medo de que algo pudesse lhe acontecer à noite; e como quando você tinha só um aninho e eu lhe pedia que “picasse” o olho, você, que eu julgava já estivesse dormindo, abria um dos olhinhos e pedia que eu não o apagasse – e até o fato de você ter-me enganado era pretexto para eu lhe dar mais um beijo, sorrindo, feliz.

Não sei se por não querer aceitar que realmente você nos deixou, ou, quem sabe, por senti-la agora tão mais próxima de mim, integrando minha própria existência, mantivemos seu quarto sem grandes alterações, decorado da mesma forma, com os seus livros, as suas coleções de gnomos e de cristais e com todos os seus bichinhos de pelúcia nas prateleiras.

Lá estão todos eles, achei-os um pouco tristes, como que também esperando por seu retorno, desde o esquilo que você ganhou no dia em que nasceu e que eu lhe dei – foi o seu primeiro presente. Por mais que tente, talvez fruto da idade, não consigo lembrar os nomes deles, o que nos impede de conversarmos como você fazia, o que é uma pena, pois certamente eles me contariam muitos de seus segredos, mesmo sendo mais seus amigos.
Em meio às fotografias suas com Zero e Lady, você e o Mano em Bush Garden e no Medieval Times, pôneis, cachorrinhos e o terço com que você estava se preparando para a primeira comunhão, as imagens de Jesus Cristo, anjinhos e São Francisco de Assis, seus protetores, reforçam sua presença, talvez deitada em sua cama e abraçada com o ursinho branco de bundinha para cima (ele, o ursinho, não você) dormindo em uma almofada em forma de coração.

Sobre a sua escrivaninha, ainda estão as suas coleções de lápis, estojos e cofres onde você guardava as moedinhas que todos os dias eu lhe trazia ( por falar nisso, não me esqueci, continuo devendo os seus duzentos e trinta e dois reais e quarenta e cinco centavos que você me emprestou do dinheiro que estava juntando para voltar à Disney, já que você não considera os pagamento em moedas que fiz – dancei nessa).

Permiti-me mexer em suas gavetas, procurando por nada específico, mas talvez para encontrar as respostas para todas as perguntas que hoje faço, mais do que em toda a minha vida. O problema é que você, durante todos estes anos, sempre falou por metáforas, por sinais, por meias-palavras, o que foge ao entendimento dos adultos, que querem tudo explicadinho tim-tim-por-tim, preto no branco, provado e comprovado por atestados e certidões, com três carimbos e firma reconhecida. E eu acho que já estou virando adulto, minha filha.

Até o fato de que as suas gavetas continuam uma completa bagunça, com tudo misturado, desde a sua coleção de papéis de carta, revistas recortadas, gravuras dos bichinhos da Parmalat, um ou dois chicletes e até o meu carimbo que procurei como um louco e lá estava, deveria ser a comprovação de que você continua aqui, ao meu lado, que nada mudou.

E em meio à mais completa zona da sua (des)organização, encontro um cartão que você fez para mim, pelo dia dos pais, há alguns anos: “Ao meu Papai – Eu te adoro. Deus, obrigado por ter-me dado o meu pai e todo o amor que eu sinto por ele.” ; dentro, um marcador de livros com uma cruz encimada por “Siga-me” e, no verso, a inscrição: “Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amo (Jó 15,12). Certamente, hei de supor, mais uma mera coincidência.

E descubro, em uma pasta, todas as cartas que você fez para mim e sua mãe, por ocasião de nossos aniversários e nossos dias, e a sua receita de docinho de coco que você deu para a mamãe, este ano, no dia de seu aniversário, em que você conclui com “... não ponha nenhum fermento de egoísmo, nem de tristeza... ”, talvez (?) procurando consolá-la para os tempos de hoje, além de um daqueles cartões de felicitações iguais a cartões de crédito, como que querendo me dizer algo: “Uma missão impossível...: Esquecer você”.

Em seu closet, os “modelitos” de que você mais gostava continuam nos cabides, a capa do fogo do conselho dobrada à espera do próximo acantonamento, e até mesmo aquele short de jeans que eu implicava quando você usava, dizendo-lhe que não permitia que você ficasse mostrando o umbigo e a polpa da bundinha para ninguém, agarrando-a e cobrindo-a de beijos.

Seu banheiro continua arrumado, com a sua coleção de conchas que catou com a Titiz, em Macaé, caminhando descalça pela beira da praia, com as ondas vindo lamber seus pés; no canto da bancada, seu aquário agora vazio, sem água e sem os peixes, que não resistiram ao frio do inverno, ou, quem sabe, a tanta saudade. Sente-se ainda no ar o seu perfume, perfume que tantas vezes me inebriou cheirando-lhe o pescoço, às vezes tendo que agarrá-la à força, porque você fugia de mim: não sei se por tudo estar impregnado de você, ser você, ou se exalado dos vidros arrumados no canto da bancada.

Na varanda, a sua “coleção” de bromélias plantadas em copos plásticos, meio ressequidas, lembram-me que elas não mais estão sendo tão bem cuidadas, pois tenho me esquecido de regá-las como devia, em seu lugar, desculpe-me.

A mudança mais significativa, filhinha querida, é que agora, no lugar da poltrona onde você gostava de ficar sentada vendo os “cartoons”, se encontra o berço de sua nova irmãzinha – Amanda. Isto é somente uma rápida explicação para outros que venham a ler minhas divagações, porque desnecessária para você, que já a conhece.

A forma como ela às vezes olha para um ponto qualquer das paredes ou do teto do quarto e, logo após, sem mais nem porquê, abre seus sorrisos da mais pura alegria e felicidade, tenho certeza, somente pode ser você que lhe está dando “punzinhos de barriga”, como o seu mano querido sempre fazia com você.

E os primeiros raios de sol de mais um dia que amanhece, infiltram-se pela cortina, formando desenhos e sombras nas paredes. Deitado em sua cama, como você, abraço-me ao seu ursinho de pelúcia, que já até mesmo absorveu o seu perfume nas tantas noites que dormiram abraçados e, sorrindo, adormeço, quase que sem concluir a nossa oração: “Papai do Céu, fazei de mim ...
LHMignone
Enviado por LHMignone em 22/09/2005
Reeditado em 19/10/2013
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