Quero um lugar no céu
Há muito realismo no que estou vendo... Há quem precise de um mundo estável, bem estruturado, cheio de sentido para seguir vivendo. Esses regulamentam as verdades que todos devem respeitar. O resto do povo, sem princípios, sem objetivos, sem moral não passaria de mão-de-obra, ou engrossaria rebanho dos marginais. E uma mão-de-obra cada vez mais desnecessária, já que os robôs e a automação estão tomando conta de suas funções repetitivas, monótonas e que exigem força bruta.
Pois seria assim o universo, um mecanismo perfeito, em que as peças se encaixam perfeitamente, e tudo funciona com uma regularidade impressionante, ditada pelo ordenamento de um criador perfeito.
Pouco importa se aqui ou ali apareçam umas pequenas falhas, se um meteoro se choca com um planeta, se uma guerra, ou uma epidemia exterminem milhões. Estaria tudo perfeito, como deve ser. Os exterminados deveriam desaparecer, ordenadamente, para que o mundo continue a ser com sua lógica interna. A destruição advinda das guerras seria necessária para que fosse possível a reconstrução e a retomada da vida expurgada desse excesso de gente.
Quem morreu poderia requerer um lugar no céu. Seu sacrifício teria sido para o bem de todos. Afinal, todos hão de morrer um dia, e o céu se apresenta como um plano de aposentadoria perfeito, um baú da felicidade cujo carnê é oferecido em todas as esquinas e fácil de pagar. Basta acreditar, obedecer, confiar, trabalhar, aceitar com esperança todas as contrariedades da vida.
Tudo seria muito simples e o mecanismo universal poderia continuar funcionando indefinidamente se os homens não se metessem a alterar a ordem das coisas como elas são. Para quê descobrir a América, por que se meter a criar máquinas, a aumentar a produção? Imprensa? Quê besteira! Com isso está todo mundo lendo, se informando e, conseqüentemente, sofrendo por antecipação. Agora vão querer acabar com o analfabetismo! Ciências? Que barbaridade, para quê saber como os fenômenos acontecem? Ciências sociais? Aqui foram longe demais. Explicar as relações sociais, o por quê de guerras? Que interesse há nisso? Luta de classes? Isso não existe. O que há são maus elementos que não aceitam as verdades absolutas. Para esses o remédio são os cassetetes e o gás lacrimogêneo. Revolução Francesa? Nem fale nisso. Começam cortando a cabeça dos reis, depois, quem mais será imolado? Napoleão Bonaparte, filho do capeta! Lênin, assassino de milhões! Aborto? Somos pela vida. Células-tronco? Ah, assassinos desgraçados! Efeito estufa? Mais uma balela de ambientalistas que não tem o que fazer.
E mais: a lua está se afastando. O sol vai virar estrela anã. Marte já teve oceanos. O campo magnético da terra está se invertendo. Os buracos negros sugam toda a energia ao seu redor. A Via Láctea vai se chocar com Andrômeda (essa eu chutei).
Caramba! Lá se foi a estabilidade do universo. E para cúmulo da coincidência o meu relógio está atrasando. Ah essas máquinas digitais, como são falhas, parecem descartáveis. Que saudades do meu Patek Philippe.