Quando a cabeça não pensa antes...
Todos os dias o silêncio da biblioteca era quebrado pela chegada da menina. Muito meiga e delicada em seus modos, dava um bom dia em ton baixo para mim e sentava-se no mesmo local :A cabeceira da mesa grande de pesquisas. Vinha somente estudar. Pegava na estante o livro que queria. Já sabia onde eles estavam. Ficava uma hora estudando até que meu celular despertava avizando-me que era hora do meu almoço.
Tão acostumada estava com a presença da menina que comecei a ficar preocupada quando ela não chegava ou chegava atrazada. No inicio da semana chegava pontualmente as 11 horas. Mais para o final chegava 11 e meia, se viesse.
Eu, ocupada com as minhas taferas diárias, e ela estudando para o vestibular. A conhecia desde bem pequena. Mas mal trocávamos algumas palavras.
Naquele dia ela chegou mais cedo e eu estranhei. Nada perguntei pois não sou enxerida. Mas observei que seu semblante estava triste. Ela não pegou o livro mas sentou no mesmo lugar. De costas para ela observei através do vídeo do micro que ela olhava para tudo sem direcionar o olhar a nada por muito tempo.
Sei que deveria lhe perguntar se estava tudo bem mas não fiz isso. Respeitei sua privacidade. Seus pensamentos eram só seus e eu achava que não tinha o direito de invadí-los.
Depois de duas horas, assim que o alarme soou, ela se levantou e saiu sem me dizer o habitual "tchau". Era muito estranho. Era a minha hora do almoço e sem pensar muito fechei a porta e tomei a direção que ela havia tomado. Avistei-a logo, sentada num banco da praça. Porque ela não foi trabalhar? Pensei, e resolvi que devia isso a ela. Dirigi-me a ela e falei diretamente olhando em seus olhos:
_Tudo bem Mari?
Achei que ela fosse simplesmente responder, mas ao invés disso, desabou num choro convulsivo com a cabeça baixa. Não me disse nada.
Abracei-a e acariciei seus cabelos sem dizer nada. Aquele abraço reconfortante era tudo o que ela precisava. Despejou-me seus problemas um a um. Seu trabalho não existia mais. A empresa onde trabalhava faliu. Sua mãe estava muito brava com ela. Escolheu as palavras para me contar a história mais absurda, mas que acontece todos os dias com alguma menina boba. Em resumo para que o amigo leitor não perca o seu tempo, estava grávida de um covarde, que assim que soube, fugiu a sua responsabilidade deixando a Mari sozinha e sem rumo. Perguntei-lhe o que pretendia fazer e ela respondeu que não sabia.
Disse-lhe que se precisasse de ajuda poderia contar comigo. Ela assentiu com a cabeça, levantou-se e saiu sem olhar pra trás.
Por alguns dias a menina não apareceu na biblioteca. Achei que como não estava trabalhando, não viera porque não precisava passar a hora do almoço aqui.
Já se passou a mais de um mês. Hoje recebi uma pessoa para fazer uma pesquisa e ela me perguntou se eu conhecia a Mari. Disse-lhe que sim e então, o que ela me disse, foi uma bofetada inesperada.
_Mari foi encontrada morta na nascente que fica aos pés do morro do penhasco. Ninguém sabe o que pode ter acontecido. Ela deve ter escorregado do morro.
O sepultamento seria a tarde e eu fui.
Chegando lá o caixão estava lacrado devido ao fato de ter se passado muito tempo de sua morte. Chegou do IML e foi sepultada rápido. Suas amigas estavam desconsoladas . Sua mãe estava séria. Olhei pra ela mas nada disse. Acho que Mari preferia assim. Não sei se ela chegou a dizer a mãe que eu sabia , mas o fato é que ela me procurou depois e apenas disse :
_Obrigada!
_Não se preocupe. A Mari não merecia isto.
De mim ninguém saberia nada. Deixe-os pensarem o que quizerem. Saí dali rumo ao ponto de ônibus sem olhar pra trás. O preconceito contra a Mari doendo em minha alma. O pior preconceito é aquele que vem da própria família.
Queria dizer as outras meninas que tomassem cuidado. Os meninos não estão preparados para serem pais. Fogem ao primeiro sinal de perigo. São raros aqueles que assumem numa situação dessas.