MIRAGEM
Tardinha. Uma chuva fina impertinente caía gelada. O céu cinzento e carrancudo. Nem parecia um dia de primavera . As copas dos jacarandás molhadas na praça. Sombrinhas coloridas misturadas aos guarda-chuvas dançavam no bailado de muita gente. Confundiam-se com matizes policromos dos letreiros e das barracas atulhadas de livros.
Caminhava lentamente no meio da multidão, que engrossava a Feira àquela hora. Observava silente o vaivém misterioso. Alguns com sacolas carregadas de livros. Outros, apenas olhos curiosos, dedos hábeis e cobiçosos, remexiam as caixas, examinavam os volumes, auscultavam os títulos. Consultavam os autores, depois seguiam em frente distraídos.
Tenho como hábito sagrado visitar todos os anos a Feira do Livro. Passar tardes. Entrar noites entre os passeantes. Chegar em todas as barracas. Assistir aos eventos ali realizados. Comprar meus autores preferidos. Pedir autógrafos. A Feira para mim, como muitas pessoas afeiçoadas à leitura, é uma festa. Festa para os olhos, festa para a alma. Agora estava mais uma vez naquele lugar, naquela praça. Passava em todas as barracas. Perdia-me no mundo encantado, de sonho, de poesia. A Feira é um mundo mágico, que me conduz aos castelos misteriosos de reis e rainhas que povoaram minha infância. Com olhos ávidos tomava nas mãos os livros com suas capas coloridas, brilhantes, títulos sugestivos. Acariciava-os com a ternura de uma mãe que abraça os filhos como tesouros preciosos. Minha vontade era comprar muitos. Examinava os preços.
A tristeza estampava-se em meu rosto, confrangia-me o coração. O magro salário de professora aposentada mal dava para comer, custear as despesas mais urgentes e imprescindíveis. Os livros, meus companheiros inseparáveis, que outrora lotaram minhas estantes, estavam-se tomando raros, como se fossem objetos supérfluos.
Cheguei numa banca, onde estavam espalhados os volumes pockets. Estes eram mais acessíveis ao meu parco orçamento de professora. Comprei "Antologia poética" , de Mário Quintana. Saí feliz abraçada com o invólucro como quem carrega uma preciosa relíquia.
De repente, meus olhos se arregalaram de espanto e admiração. O coração saltou dentro do peito e infindável emoção tomou conta do meu ser.
Entre os transeuntes divisei uma figura arcada, de cabeça branca, com um terno escuro, simples e surrado, apoiada numa bengala. Caminhava com passos lentos, macios, compassados.
Apressei-me. Ele continuava sempre. Diáfano, inatingível. Chegando mais perto, ouvi a voz cansada recitando baixinho:
"Todos estes que aí estão
Atravessando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho."
Tive o ímpeto de gritar: "poeta! Espere. Quero um autógrafo."
Fiquei parada com o livro nas mãos diante da imensa fila, como que hipnotizada. Todos aguardavam o autógrafo do escritor Moacyr Scliar.
O brigadiano bateu no meu ombro:
- Senhora. Quer um autógrafo? Por favor entre na fila.
Assustada saí do meu devaneio. Voltei à realidade.
Autora: Suely Braga
Crônica premiada em 1° lugar no “Concurso Nacionalde Crônicas e Poemas” na Academia Literária Gaúcha -Porto Alegre-1998. Encontra-se no livro de contos e crônicas: “Os últimos acordes do concerto” de Suely Braga Ed. 2007 pela Editora Alcance.