DE REPENTE...
É interessante como de repente certas coisas caem de categoria e perdem importância. Talvez seja porque com o tempo se ajusta o senso de relevância, aprende-se a deixar para segundo ou terceiro plano, a mandar para o fim da fila, aquilo que até então parecia prioritário. Acorda-se para o que é de fato fundamental, essencial, que faz diferença. De repente a gente deixa de desgastar-se querendo mudar o que já não pode ser mudado, e para de querer descobrir em que ponto do caminho algo deu errado. Passa a dar mais valor à funcionalidade do que à beleza, percebe que a saúde vem em primeiro lugar. Como escreveu Guimarães Rosa, "sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão" ("A hora e a vez de Augusto Matraga"). De repente a gente não se espanta mais com as esquisitices do mundo. Afinal, a gente faz parte dele. Nem fica mais reparando no modo como certas pessoas vivem, pois isso só interessa a elas; se não estão fazendo mal a ninguém, vivam como quiserem. De repente a gente percebe que precisa sonhar, mas que tem de deixar fora dos nossos sonhos quem não quer fazer parte deles. Amar alguém não significa que é impossível viver sem esse alguém. De repente você para de sentir pena de si mesmo e percebe que o papel de vítima não lhe cai bem. De repente já não faz diferença se os quadros na parede estão assimétricos, ou muito acima, ou muito abaixo da altura que dizem ser a correta, e então simplesmente fica de lado a ideia antiga de um dia mexer neles, e permanecem assim, porque assim está bom. De repente não parecem tão feios assim aqueles azulejos do banheiro, cuja troca vinha sendo cogitada há tempos, e então são deixados quietos porque assim está bom. De repente se deixa de ficar indignado porque alguém não está agindo certo, e então se larga esse alguém à própria sorte, para que se avenha com a própria consciência. De repente fica claro que não se pode forçar a barra. A lente se ajusta e define que forçado não é natural, que parecido não é igual, que comum não é sinônimo de normal.
De repente se abandona o espírito de arrumação e passa-se a não se importar mais com livros e CD's fora do lugar, e "cai a ficha" de que isso não tem tanta importância, pois indica que alguém os bagunça porque os usa, e esse alguém é que é importante, e que coisas são nada sem uma presença humana. Coisas fora do lugar apenas denunciam essa presença, esse coração que pulsa. Eu, que nunca liguei muito para tudo arrumadinho, de repente me vi ligando menos ainda. Basta-me um meio termo, algo que não seja um primor de organização, mas que também não seja o cúmulo da bagunça. CD's estão fora das gavetas porque os tirei para ouvir; livros estão fora da estante porque os tirei para ler. Acumulam-se. Quando resolvo guardar os CD's nas gavetas, num rompante raro de arrumação, acabo vendo outros que gostaria de ouvir, e os tiro. Então entram uns e saem outros, e tudo recomeça. De repente se deixa de querer ficar mostrando aos mais jovens como é que eles devem ser ou agir, porque não adianta e também porque eles no fim acabam encontrando seu rumo. De repente a gente passa a não confiar tanto na memória porque descobre que ela não é tão fiel assim. A mente que revela também é a mente que mente.
De repente você se desengana, e é bom porque aí desencana. E livra-se daquele peso desnecessário sobre os ombros, e mata aquela preocupação que lhe está tirando o sono. E manda embora aqueles ares de importância por saber um pouco de algum assunto. Afinal, qualquer pessoa sabe um pouco ou muito de alguma coisa. E então já não há incômodo nenhum em ser voto vencido, pois é melhor perder a discussão do que perder o amigo. No fim das contas, um ponto de vista não se compara a uma amizade. De repente vem a percepção de que não se deve ser nem muito cheio de si nem muito simplório, e que é salutar situar-se num ponto entre esses extremos. Quando há demasiado apego ao ego, o martelo que a gente bate acerta a ponta do dedo e não a cabeça do prego. De repente a gente não quer mais perder tempo, porque o próprio tempo se encarrega de revelar que a vida é só o que ocorre no fugaz, rápido, fugidio intervalo entre um abrir e um fechar de olhos.