Pedaladas e pandorgas

E, no sétimo dia, Deus se apiedou da minha luta contra o sol e achou por bem mandar uma tarde nublada. Não me passou despercebido o desígnio dos céus, pois dali a pouco eu já estava na rua, andando de bicicleta. Era o caso de fugir dos carros e ir pedalar bem longe da cidade, onde seria mais provável que aproveitasse a raridade daquele dia. Foi com esse desejo que cheguei à Estrada Ecológica, que só se chama assim, força é dizer, porque as outras não o são. A Estrada Ecológica consiste em sete quilômetros nos quais o ciclista pode ver árvores, pastos, lagos, vacas, ovelhas e tudo o mais que oferecemos em troca do nosso urbanismo. E, de quebra, ainda é possível observar, à distância, as montanhas da Serra do Mar. A estrada conduz até outra, mais famosa, a da Graciosa, mas não ainda no ponto em que está sua graça.

O começo é estrada de chão. Não estou acostumado e foi com grande alívio que alcancei uma parte asfaltada. Ali há algumas casas sossegadas, com cachorros no meio da rua. Vem em minha direção um homem que carrega uma vara de pesca. Pergunta-me se eu não passei por uns pescadores. Digo que não, e, na verdade, mal posso estar certo de que algum dia já tenha efetivamente visto um pescador. O homem se vai, e logo terminam as casas e a rua volta a ser de chão.

São muitas subidas, o que equivale dizer que também são muitas descidas. Vejo uma igrejinha e placas que levam a um ateliê, além de algumas chácaras. Há momentos em que se pode ter uma bela visão da paisagem. Tiro uma ou duas fotos, na ilusão de que significarão alguma coisa para quem não esteve lá. Passo ainda pelos fundos de um bairro pobre, até que a estrada volta a ser quase solitária – além de alguns carros, tenho a companhia dos cachorros que me perseguem.

No final da estrada, Deus já havia mandado um pouco de sol, mas aquele sol fraco e gostoso de fim de tarde. Foi neste momento que, por um brevíssimo instante, eu fui feliz. E senti o desejo de ver pessoas, razão pela qual decidi voltar por um bairro residencial. Ali encontrei muita gente nas ruas aproveitando o domingo. Muita gente na frente dos bares, de vez em quando um carro com o som ligado no último volume, por toda a parte gente caminhando, jovens em busca de uma aventura, famílias indo à igreja, tipos suspeitos parados nas esquinas, crianças correndo para lá e para cá – tudo o que se espera de um honesto bairro residencial em dia de domingo.

A única diferença estava no céu, repleto de pandorgas – ou arraias, ou, mais comumente, pipas. Parecia epidemia: não havia rua em que não se encontrasse pelo menos meia dúzia de crianças, e às vezes até marmanjos, segurando um carretel e olhando para cima. Tudo isso, é evidente, bem ao lado da fiação elétrica. E era tanta gente mesmo empinando que eu tive que pedalar bem devagar, pois não me agradaria ter o pescoço cortado pelo cerol. Mas não os recriminei, pelo contrário, achei que estavam fazendo uma coisa muito boa.

Só não me lembrei de tirar uma foto. Em todo caso, que fique registrado para a posteridade que, no ano da graça de 2015, ainda havia um bairro neste país em que as crianças se divertiam soltando pandorga.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 01/06/2015
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