Inquietude
Encararam - me os olhos. Eram somente vidro. Falou-me a límpida voz. Era somente insultos. Se desconfigurava a face em inúmeras expressões. Em incalculáveis lembranças que se mesclavam no berço do sorriso sarcástico, no leito dos olhos materialistas. Oportunistas. Todas as más lembranças de tudo o que existe de ruim se miscigenavam na rispidez daquela barba curta, daqueles brancos dentes, daquela testa de linhas severas. Era toda a perfídia, a gargalhada da urbe desonesta, os motivos de se querer ir embora. Era o homem configurado. Programado. Comum.
Cravou - me como um cachorro aos seus pés. Para ele, todos são cachorros. Com proeminência, via-lhe o dedo indicador diante de minha pueril fronte, tão álgido e carente. Aquele maduro dedo a contar-me suas falsas verdades, acreditadas com tamanho fervor.
Por tantas vezes me vi como um nada. Inferior, acaso. Então vi a cidade tal como é. O nada. O pensar ser tudo, relevante... os homens mortos de frio pelas calçadas ao amanhecer. Os homens e crianças adultos. Adulterados. As mãos que se buscam, inocentes, e vencidas pelo coração se arranham a tez. Se permitem sofrer.
Em determinado instante fui errante, quando no desespero me convenci de que o encanto do mundo estava ausente. No entanto, desvendei o caminho de volta, repleto pelas versadas trincheiras. Provei da vetusta água novamente da fonte e senti - a, ainda pura, percorrer o interior de meu peito quente com certa beleza, trazendo frescor. E nos olhos dos adultos homens, reconheci a graça do aprendiz. Tal como os meus, por detrás do infante rosto, dos brancos cabelos e das entradas. Exatamente como minha própria juventude. Um dia aprendemos a amar...
Enquanto isso, lamentavelmente, há que se ignorar o que encontramos. A traição, a loucura, os olhos e sorrisos que choram, a linguagem vulgar, as porções de terra e carinho mal distribuídas, a riqueza que simplesmente inexistente. A esmola que é tão pouco, mas serve de sustento. Passo de cabeça baixa. Ninguém me rouba! O brilho dos olhos se esconde em pálpebras fechadas. Cegas. Cerradas. Guardadas nem sei para quê. Nem sei para quem.
Um dia, certamente não me garanto... Não me responsabilizo pelos meus próprios atos. Um dia eu viro esse mundo e perco o chão! Perco a cabeça, viro um insano e abraço num susto esse severo homem de sorriso sarcástico! Lhe pego de surpresa, lhe paro numa esquina qualquer e lhe digo olhando nos olhos com autoridade: Eu te amo! E você me ama também! Que é pra ele saber que tudo o mais se esconde num abraço... que obrigatoriamente, deve e irá me amar de volta! E que, com toda reciprocidade, merece esse amor. Ainda que o recuse por completo. Simplesmente merece ser amado para se salvar do escasso amor que existe dentro de si.