Dias de chuva e frio

Nos últimos dias, as sombras tornaram-se geladas e úmidas por uma insistente chuva que invariavelmente chega ao fim da tarde. Nestas ocasiões, recolhemo-nos, com nossas esperanças solares, dentro de casa, observando com alguma amargura as gotas d’água nos vitrais, jamais conformados com a instabilidade climática que repercutia em zonas igualmente instáveis do nosso ser. A tristeza é tão líquida e silenciosa. O mundo desaba em uma desarmonia profunda de aguaceiros suaves. Apalpamos, por assim dizer, a incomunicabilidade do mundo lá fora com nossa secura cansada, e nossos remorsos, aos poucos, são regenerados pela velada virtude ociosa que somos obrigados a nos entregar, contempladores de jardins que, definitivamente, mergulham líquidos em nosso ser.

É inverno. Os pingos d’águas, lentos e preciosos, aos poucos cristalizam os vitrais de nossas imensas janelas antigas, e, ao mesmo tempo, acinzentam as paisagens nos jardins flutuantes, causando em nós aquele sentimento sutil de não pertencimento às coisas da vida, uma letargia oriunda da efêmera condição do verde visto em opacidade, real e transcendente. Há, no ar, uma tristeza vislumbrada que, aos poucos, vai se humanizando, trazendo conforto, carinho e solidão.

Nestas tardes de sombras úmidas, é como se tornássemos repentinamente mais irmanados, fieis àquela gratidão insuspeitada que, de regiões obscuras, vem nos visitar, tornando-nos quase ausentes, leves, mas provisoriamente conectados aos suplícios do mundo, com o mundo, no mundo. Creditamos à vida a intensidade rarefeita que os dias de sol nos roubaram para jogá-la no rol das desilusões versáteis mas sem empatia nenhuma.

Tateamos, nós, os recolhidos pela chuva, uma aleluia secreta e ao mesmo tempo rompida das emanações profundas da vida. A frialdade do mundo é tépida dentro da gente, os sonhosos e cúmplices expectadores, guardiães felizes da uma transparência a se cumprir. Agora que a noite se aproxima, tangenciamos as possibilidades de redenção, os processos autênticos das virtudes acolhedoras, pois as tardes são recheadas de bolachas insossas e chás amarelados, elementos triviais que comungam com o mistério do corpo e a sede embriagada do espírito. As hóstias e os vinhos encarnam-se e a via-crúcis da alma é o aguaceiro destas tardes repetidas de inverno, chuvosas e íngremes.

Amanhã, provavelmente, a chuva retomará sua função de lançar novas expectativas de comunhão. Talvez inconscientes, aguardaremos que os trovões se desenvolvam numa crescente desprendida, as nuvens negras se aproximem ameaçadoramente, o céu se acinzente e castigue, novamente, os jardins, já exaustos pelas águas frias dos últimos dias. Alegrará o inverno e aquecerá nossos corações, e a vida respirará mais aliviada, numa comovente dissipação de tensões reprimidas e êxtases invioláveis.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 31/05/2015
Código do texto: T5261081
Classificação de conteúdo: seguro