Ferrugem
O arrependimento já incomodava. As filas imensas e o calor insuportável se encarregavam de fornecer os ingredientes necessários para testar os limites da paciência. A balconista mostrava-se incapaz de resolver uma simples adição e com a calculadora na mão atrapalhava-se ainda mais, voltando inexplicavelmente ao ponto de partida. Irritou-se com a oferta de ajuda externa (a minha), sem conseguir contabilizar o valor final dos produtos. Sua teimosia mostrou-se infinitamente maior que o pífio conhecimento de cálculos elementares, apesar da impossibilidade momentânea de uso do tradicional sistema de leitura por código de barras, em virtude da falta de energia elétrica. Para sorte de minha “vítima” o socorro providencial chegou a tempo de viabilizar a transação comercial, deixando o cliente “plenamente satisfeito” com a inesquecível demonstração da invejável capacitação profissional, proporciona pela empresa a seus funcionários.
Cada vez mais sou levado a acreditar no conhecido ditado popular da época de nossas avós que garante: “Tudo o que não se usa, enferruja”. Nada mais verdadeiro, constatado ao vivo e em cores naquele supermercado. O uso da tecnologia facilitou de tal forma as atividades cotidianas que deixamos de exercitar o cérebro, transferindo essa função aos incontáveis meios disponíveis para tal. Em todos os setores sobressaem as mais diferentes possibilidades da modernidade, em que o usuário só tem o trabalho de digitar alguns caracteres e pronto: tudo está à mão em questão de segundos. Mas nem só o cérebro foi afetado pela tecnologia. Há muito deixamos de exercitar os músculos por conta do vidro elétrico, da direção hidráulica e do câmbio automático. Ou os tendões e o sistema cardiorrespiratório ao preterir a escada e utilizar constantemente o elevador. Ou ainda quando perdemos a oportunidade de caminhar algumas quadras para atender a algum compromisso, preferindo o conforto do ar condicionado e do som automotivo.
Às vezes sou acometido pela nostalgia dos tempos da adolescência, quando frequentava o curso de datilografia. A disciplina rígida imposta pelo professor culminava com a habilidade necessária para concluir os exercícios com eficiência (fico inconformado com o humilhante “cata-milho” exibido por alguns “experts” da tecnologia). Sinto saudades do tempo da chamada oral para a tabuada (imagino o sentimento do educador diante do aluno que manipula descaradamente o telefone celular em sala de aula), da disciplina de Educação Moral e Cívica; do emprego correto da crase, do trema, do acento agudo. Coisas que não voltam mais.
Ainda hoje procuro preservar aqueles valores quase esquecidos, mesmo que para isso seja considerado ultrapassado (os mais jovens empregam maldosamente outros termos pejorativos). Minha velha e boa Remington acabou empoeirada na prateleira, depois de quatro décadas de bons serviços prestados. Decerto também já apresenta vestígios de ferrugem. Para mim e para ela, não há desengripante que dê jeito. Sinal de que o nosso tempo já se foi.