MEUS PROFESSORES INESQUECÍVEIS
Canhoto, tímido e com leve grau de gagueira: um perfeito candidato ao bullying. Este era eu. Lembro da professora da pré-escola brigando comigo para que eu pegasse o lápis com a mão direita. A mesma somente descobriu que eu era canhoto, pois numa distração dela e minha, fiquei à vontade para colorir o desenho à minha maneira, com a mão esquerda. A professora, ao me ver escrevendo daquela forma, ruminou algo do tipo: “Ah, você é canhoteiro!”. E assim fiquei até hoje.
Filho de pais severos e muito éticos e honestos, sempre fui muito obediente, pois tinha medo de tudo, inclusive de errar ou passar vergonha. Tal característica me tornou um aluno introspectivo, daqueles que engoliam a indigesta dúvida e não perguntava nada para o professor. Outro fator que me intimidava e envergonhava era a gagueira. Pedir simplesmente para ir ao banheiro era um suplício para mim. Sempre chamava a atenção dos outros alunos que dirigiam para mim olhares zombeteiros, com a possibilidade de gozação prolongada no intervalo. O pior obstáculo para alunos como eu são os próprios colegas (se é que posso chamá-los assim). Mas tudo em minha vida mudou, por conta de alguns professores, mestres, amigos e anjos que me guiaram pela escuridão dantesca de uma sala de aula. Seus nomes flutuam eternamente na seção “gratidão” de minha memória cognitiva e afetiva.
A primeira foi dona Elza, professora da segunda série do ensino fundamental. Elza era brava, perfeccionista, mas, ao mesmo tempo, inteligente, sábia e certeira em suas ações. Ela sabia dosar momentos de motivação e cobrança em minha aprendizagem. E como ela fazia isto? Ela conversava comigo. Perguntava coisas de minha vida, de minha família. E isto ajudou a desenrolar e destravar a minha expressividade. Também requisitava leituras constantes. Nas atividades de caderno, inúmeras vezes arrancou a folha que eu borrara ou cometera muitos erros, dizendo sempre: “Você pode fazer melhor”. Aquilo mexia com o meu “brio”. Eu sentia que ela se preocupava comigo e queria provar a mesma que eu era merecedor desta preocupação e, então, me empenhava. Dona Elza me ensinou a arte da autocorreção e com o seu perfeccionismo eu me identifiquei totalmente.
O segundo anjo em minha vida foi a dona Elenice. Embora professores não gostem que os chamem de donas ou tios atualmente, no meu tempo, tais termos eram muito respeitosos. Quando penso em meu passado escolar, tais termos quase se tornam um prefixo dos nomes próprios destes professores. Elenice não tinha o mesmo rigor e severidade de dona Elza. Porém, nos conquistava através de outros atributos: era doce, criativa, amiga e gostava de dar aulas diversificadas. Suas aulas eram as mais esperadas por toda a turma da sétima série (É, esta professora era de sétima série). Ela dividia a classe em grupos e criávamos textos teatrais. Produzíamos os textos e depois encenávamos para a classe toda, com direito a figurino e palquinho improvisado com carteiras da sala de aula. Foi com ela que comecei a perceber que no teatro, a gagueira sumia e com o treino este distúrbio poderia ser controlado ou até mesmo eliminado de minha fala. Elenice me mostrou o outro lado da gagueira. Ela disse para mim perante toda a classe que os gagos pensavam muito mais rápido que a própria fala e por esta razão se atrapalhavam ao se expressar. Isto mudou tudo, pois eu me considerava um perfeito idiota, que nem sequer a fala dominava. Ao ouvir isto reconstruí minha autoestima, pois não era um idiota. Na verdade, eu era quase um aluno superdotado (o patinho feio enfim se viu cisne). Elenice também elaborou projetos de redação que culminaram na produção de livros da classe. Os livros foram todos mimeografados e ilustrados com desenhos nossos (Tenho o meu exemplar até hoje).
No mesmo ano tinha outra professora, a dona Belmira. Esta professora era de Geografia. Não era comprometida. Suas aulas se resumiam a fazer resumos do livro do Vicentini, o “Geografia Crítica”. Belmira ora pedia para fazer resumo, ora pedia para elaborarmos vinte questões sobre o texto. Enquanto trabalhávamos como camelos, a mesma ficava a ler revistas “Contigo”, “Ti-ti-ti”, ou catálogos de perfumarias. Entretanto, tinha uma personalidade muito forte, com um certo tom de sarcasmo, ironia e humor que lembrava uma militante de esquerda aposentada. Eu e a maioria dos alunos achávamos que Belmira não era boa professora, entretanto, os conhecimentos de geografia são os mais acessíveis em minha mente. E sabe por quê? Belmira, intencionalmente ou não, nos ensinou a sermos autodidatas, a irmos atrás das respostas, a elaborarmos as nossas perguntas, a correr atrás do tempo, a construir o nosso conhecimento. E neste quesito, ela foi a melhor.
Na oitava série, teve o Sr. Nelson, de Ciências. Este, com certeza, foi o precursor dos professores de cursinho, pois ensinava através de piadas, era muito engraçado e bonachão. Lembro de uma certa ocasião que a classe estava conversando e se dispersando em sua explicação, quando o mesmo deu uma risadinha maquiavélica e disse brincando: “Vocês vão ver na hora da prova!”. Em outro momento, no qual a classe também estava se dispersando em outra de suas aulas expositivas, o mesmo enrolou-se na cortina, dizendo: “Gente, gente, olha a mulher maravilha, ui!” A classe inteira caiu na gargalhada e ninguém mais ficou sem prestar atenção nas aulas do Nelsão. Ele era dinâmico, divertido demais para ser desperdiçado.
No colegial, tive dois professores que eram extremamente difíceis: a dona Marlene, de Biologia e o Sr. Evódio, de Português. Eles eram difíceis, suas provas mais difíceis ainda. Mas ensinavam com paixão, com vontade, tinham postura, imponência que impressionavam. Quando os via ensinando, eu ficava pensando: “Nossa, que desenvoltura! Quero ser igual a ele ou a ela um dia!” Eram tão sérios e profissionais que nos sentíamos valorizados. Nas aulas deles, eu não me sentia aluno de ensino médio e sim de curso superior (era de repente teletransportado para a faculdade e deveria mudar minha postura e meu empenho).
Edna Portari foi um divisor de águas em minha vida. Esta professora eu conheci em um curso de teatro no qual me matriculei na casa da cultura de Araraquara. A princípio, meu interesse era apenas treinar minha expressividade e trabalhar minha gagueira, já enfraquecida pelas aulas da professora Elenice. Edna se apresentava dizendo: “Olá, eu sou um demônio!”. E de fato fora. Era implacável com erros. E os erros que ela mais criticava eram os erros que feriam a ética: a preguiça, a falta de vontade, a falta de convicção, a falta de firmeza, a falta de seriedade e comprometimento. Mas, de demônio, Edna foi se revelando um anjo em minha vida. Ela percebeu minha timidez e minha gagueira e me ensinou a encarar as pessoas nos olhos, a controlar minha fala, a me impor, a me defender e a conquistar meu espaço. Foi sem dúvida, a professora mais importante e significativa que tive em meu processo de aprendizagem. Em minha primeira atuação tive que interpretar um protagonista, coisa que me assustou muito. Logo eu que queria ser figurante, a árvore ou a pedra da cena, tinha que ser escalado para ser protagonista. Mas Edna era assim. Ela percebeu minhas limitações e me fez lutar contra elas, mesmo contra minha vontade. Sou muito grato a Edna por tudo o que fez por mim.
Na faculdade (UNESP), tive inúmeros professores, mestres e doutores, mas muitos ficavam presos a teorias e a comentários de livros que solicitavam a toda semana. Embora, estivesse feliz por estar cursando o ensino superior, muitas vezes reconheço que o ensino era tedioso e a relação professor-aluno era muito distante. Tanto é que para entrar em um mestrado ou doutorado em uma universidade pública era tão complicado que as pessoas diziam que era mais fácil ser aceito na maçonaria do que no curso de pós-graduação scrito sensu da UNESP de Araraquara. Neste período, alguns professores merecem destaque: o Zaga (Luís Gonzaga Marchezan), que era divertido, sarcástico e valorizava seus alunos, quebrando o distanciamento. No ensino superior tinha também a Rosário, que tinha a versatilidade de um apresentadora de televisão ao abordar um assunto. Ela sabia prender a atenção do aluno como ninguém. E, por fim, os professores Antonio Suarez Abreu e Márcia Sgobbi que tinham um carisma e uma didática maravilhosa para ministrar aulas, isto sem mencionar o grande prazer com que ensinavam.
Formei-me em Letras em 2001 e ingressei na rede SESI em 2003. Como professor titular em língua portuguesa, pude perceber que o trabalho também ensina. Nesta unidade escolar, aprendi muito com alunos, com os professores e gestores com quais mantive e mantenho contato até hoje. Profissionais como Martha, Márcia, Ana Lúcia, Francisca, Nane, João, Jorge, Eliani e outros me ensinaram a dimensão da prática. A arte da decodificação do conhecimento acadêmico para a sala de aula, coisa que a faculdade ainda carece de muito aprimoramento (e espero que a UNIP me convença do contrário).
Escolhi ser professor, pois foram as pessoas que transformaram a minha vida. Acreditaram em mim mais do que eu mesmo acreditaria. E, com estas atitudes motivadoras, fizeram com que eu olhasse para dentro de mim e enxergasse um universo de possibilidades latentes, esperando que uma benéfica caixa de Pandora fosse aberta.
Hoje procuro sintetizar um pouco das técnicas de todos os mestres que tive em minha prática. Crio composições para ensinar conceitos, decodifico teorias para a linguagem dos alunos, procuro entreter os alunos com piadas e textos engraçados para tornar o ensino mais atraente e sugestivo. Respeito e valorizo o conhecimento prévio dos meus alunos. Motivo e, se preciso for, os provoco, os instigo para que despertem para o aprendizado. Também valorizo a cultura e o meio estudantil: tenho até um canal no youtube (Profirmeza) e o blog “profirmeza.blogspot.com”, onde posto vídeos e textos para motivar os alunos. Julgo ser um professor que também se preocupa com formação moral e ética dos alunos, assim como fui educado. Para mim, ensinar não é apenas adestrar alunos para que passem no vestibular, e sim, formar cidadãos conscientes de seu papel transformador.
TRABALHO DE FACULDADE
André Luiz Raphael
UNIP – PEDAGOGIA SEI - 31/03/2013