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Sorte Grande
 
A fila dobra o quarteirão, à hora de abrir a lotérica. Prêmio acumulado e todo mundo doidinho para apostar na sorte grande. Em dias assim é que a gente constata: o que move grande parte do povo ainda é esse esperar pelo dia em que a vida será fácil: sem problemas financeiros, sem dívidas, sem nome no SPC, sem viver contando minguados reais ao fim do mês.

O sol castiga. Tem gente esbravejando pela demora. A senhorinha de vermelho sofre de ansiedade aguda (pela própria e pela a que as atendentes da lotérica, na opinião dela, não parecem ter). Torcendo as mãos, enxugando o suor que poreja na testa, ela desabafa: “Que será que esse povo não abre logo? Aposto que as moças tão lá dentro bebendo café e conversando fiado em vez de atender logo a gente torrando aqui fora!”. Torrando eu não diria, já fritando...

 Como custa a espera pra tentar a sorte grande! A salvação se chama celular.  Pouco a pouco cada um saca seu aparelhinho e se transporta para o mundo do faz de conta. É um jeito de embromar o tempo. Penso que já não se fazem mais filas como antigamente: antes elas eram excelentes instrumentos de interação social. Já nos dias de hoje...  Na fila do banco, por exemplo, as pessoas se conheciam, se reviam, botavam o papo em dia, comentavam os últimos acontecimentos, falavam de suas vidas e da vida dos outros. Até namoro costumava surgir durante as longas esperas até à boca do caixa. Hoje em dia, quem disse? O caixa eletrônico facilita tudo, sem contar que  há sempre um celular servindo de barreira.  Só restam mesmo os dias dourados nas lotéricas...

Opa! Abriram a porta! A fila andou e os primeiros já adentram ao recinto na corrida pela fortuna. Só a mocinha de óculos Ray-ban não vê. O whatsApp, em que a lourinha digita freneticamente a absorve tanto que ela nem percebe o hiato formado entre ela e o rapaz de bermudas xadrez, agora lá na frente. Com a distração da garota, como uma cobra partida ao meio, a quilométrica fila, agora são duas.

Não suportando a pressão da corrente quebrada alguém lá de trás dá o grito: “Olha a fila! Emenda aí!”. Mas a moça do Ray-ban não se abala. Pelo menos para esta absorta alma, o que rola na telinha é muito mais interessante que a corrida para a riqueza. Meio aparte, ela só faz parte do fenômeno movente que perfila a pequena multidão rumo à porta de blindex, nesta manhã de quarta. O homem de bengala resolve fazer uso de seu instrumento de apoio: sai do próprio lugar e cutuca a ponta da bengala no ombro da mocinha: “Por favor, minha filha, anda aí, vamos ver se a gente chega numa sombra!”.

A menina leva um ligeiro susto e, deixando de lado o whats por um instante, corre pra emendar a procissão da esperança lá na frente. Um suspiro tenso perpassa o resto da fila. Olhares de censura fuzilam em silêncio a infratora: “Quem não tem pressa em ficar rico, não devia atrapalhar a pressa dos outros”. Que ser desprezível é esse que despreza um dinheirinho a mais? Afinal, ficando mais rico ninguém precisa enfrentar filas... (alguém já viu algum milionário em fila? Nunca!).

Enfim, o cordão humano vai se movimentando vagarosamente. Todos veem a chance de  dias mais folgados chegar mais perto. Menos eu, que nunca, jamais, em tempo algum, apostei em sorte grande. Vou à lotérica apenas para pagar um maço de contas. Sem atraso, glória a Deus! O que pra mim, nos dias de hoje, já é sorte grande demais...