MEMÓRIAS


Uma das primeiras lembranças que tenho de meu pai é a música.Ele cantava como se ela tivesse sido feita para nossa casa, que tinha ao lado um barracão coberto com folhas de zinco. Quando eu era pequena, tive dispepsia, às vezes tinha fortes dores no estômago. Em casa, seguia uma dieta, mas escapava para a casa da vizinha e comia o que não devia.Ele me encontrava chorando, torcendo de dor, me enrolava num cobertor marrom e cantava até a dor passar, até me acalmar.
Sempre dava um jeito de tornar as coisas mágicas, surpreendentes, sugerindo certas coisas e fazendo-nos (tenho uma irmã mais nova) acreditar que as descobertas eram nossas.
Nossa casa ficava num terreno em declive, entre duas ruas. Para favorecer quem morava na "rua de cima", hoje Banabuiu (nome escolhido por ele), havia uma passagem, uma viela, entre a nossa casa e a da vizinha. Não havia muro, apenas uma cerca do nosso lado; do lado dela,uma fileira de ciprestes...
Atrás da casa, havia um corte no terreno, um barranco todo cheio de avencas.Lembro-me dele nos ensinar a ter confiança e pular no seu colo.
Quando comecei a ter medo do escuro, não lembro. Íamos visitar minha avó (a mãe dele), a pé. Na volta (aquele era um caminho de boiada a ser embarcada na estrada de ferro), eu achava que as pedras eram bois deitados. Então, queria colo, mas ele apenas segurava a minha mão. Eu fazia o percurso todo de olhos fechados. Quem sabe, é por isso que até hoje não olho direito onde piso, olho para a frente, não para o chão.
Foi então que ele começou a levar-me para o quintal à noite, escolhendo primeiro as enluaradas. Nós andávamos, ele falava sobre a lua, as estrelas e depois íamos até o barranco, de onde eu pulava para os seus braços. Fizemos isso muitas vezes. Lembro da luz da lua sobre a folhagem das plantas e das árvores de uma forma perfeitamente clara. Depois, começamos a sair em noites mais escuras,
com nossos olhos de gato, os dele mais para o verde, os meus azuis, nos virávamos bem.Ele então explicava que se podia ver melhor as estrelas, e foi assim até eu perder o medo , até voltar das visitas à vovó sem pedir colo, de olhos bem abertos.