Uma porta para o passado.
Na moldura do retrato eu era o menino Caco, que sentado no colo de sua mãe aos sete meses, já era um menino feliz. Meu pai, ao meu lado e minha irmã de dois anos, a sua direita também pareciam muito felizes. Agora, observando a foto dentro da moldura, eu podia observar muitos outros detalhes e lembrar de meu passado com um sentimento de tristeza e saudades.
Aquele sapato de verniz em meus pés pareciam novos, mas eu sabia que pertenceram a um primo em cujos pés não cabiam mais. Sapatos eram feitos pra durar várias gerações. Lúcia não tinha sapatos. As coisas não eram tão fáceis como são agora pros meus filhos e netos. Não obstante a falta de conforto e as dificuldades que enfrentávamos no dia a dia, a tarde era de pura alegria. Meu pai trazia uma lata de sardinha e era festa lá em casa. Minha mãe colocava um pequeno pedaço do peixe em meu prato de pirão de feijão com farinha e eu adorava. Economizava o peixe pra dar pra comer todo o pirão. Como era bom!!! Lúcia comia a sardinha bem amassadinha com o pirão molinho que a mãe fazia.
A Lamparina velha e empoeirada no canto da parede, parece atestar que a vida ali se extinguiu. Mas as lembranças falam mais alto e ainda ouço a voz que se repetia sempre quando brincava no quintal a noite, com outras crianças vizinhas: Meu pai, o sr Armando, chamando de casa:
- Ô Moleque entra que já é tarde e a lamparina vai gastar muito querosene aqui dentro!
Quando não era assim, ele, a mamãe e outros adultos, ficavam até tarde da noite em frente a uma fogueira , geralmente em noites de luar, no quintal contando histórias dos antepassados ou contos de assombração. Eu adorava isso.
As crianças brincavam de roda, pique pega e de fazer versos. Os meus eram os melhores, hoje nem sei mais versar.
De dentro da moldura de outro retrato na parede saltou uma menina de tranças e partiu em disparada pela sala aos gritos e ainda pude me ver às gargalhadas correndo dela. Era minha prima Rosa. Ela era muito branquinha e vivia doente. Nós os meninos, só pra atentar a menina cantávamos uma música de roda quando a víamos chegar. Ainda ouço minha própria vós a cantar:
“Ô rosá, rosa amarela; Ô rosá, rosa eu sou, eu sou a rosa amarela, cravo branco é meu amor...”
Era uma cantiga muito conhecida por todos, mas a menina ficava por demais zangada e partia pra cima de mim. Crescemos e as coisas mudaram muito. Rosa se tornou uma moça muito bonita e eu parei de caçoar dela. Na parede da sala o retrato do meu casamento com Rosa. Na verdade comecei a gostar dela. Ela já gostava de mim. Acho que era por isso que ficava tão zangada comigo e não com os outros. Da moldura saímos a bailar pela sala vestidos de noivos.
Casar com Rosa foi a melhor coisa que eu fiz. Ela foi uma companheira maravilhosa. Mãe extremosa com nossos três filhos, a avó adorada por nossos netos e a melhor serva da igreja. Quando ela se foi, levou para Deus a minha vontade de viver.
Hoje volto a esta casa, após saber da morte de meu pai, e vendo a foto de minha pequena irmã que se foi antes de completar quatro anos, chego a entrar na moldura e regressar no tempo e rever meus amigos de infância e minha família. Mas o melhor, que eu queria mesmo era entrar por outras molduras e visitar Rosa mais uma vez só. Falo com meu pai através da moldura e peço a ele que leve lembranças a Rosa.
Tenho que partir pra sempre dali. A casa será vendida pra pagar as despesas hospitalares do meu pai. Foram muitos meses de UTI. Os objetos serão doados para o museu da cidade. Nada me resta a não ser sair dali. O assoalho de madeira antiga range sob o peso dos meus pés. O barulho da bengala, que toca o assoalho a cada passada, parece contar os passos até a porta. Lá chegando olho pra trás e a toalha da mesinha no canto, parece se mover. Minha mãe sacode a toalha pra por o jantar na mesa. Enquanto cruzo o limiar da porta ainda pareço ouvir os risos e a cantiga que ressoa em meus ouvidos:
“Ô rosá, rosa amarela; Ô rosá, rosa eu sou, eu sou a rosa amarela, cravo branco é meu amor.”
A porta se fecha e tudo é só silêncio...