Meu testamento
(Estou publicando novamente esta crônica, em homenagem a meu querido primo Edmur, que acaba de falecer)
(Estou publicando novamente esta crônica, em homenagem a meu querido primo Edmur, que acaba de falecer)
Quando eu partir, não vou precisar de testamento, pois não há praticamente nada o que testamentar. Vou fazer, no entanto, o inverso. Há algumas coisas que eu quero levar. A primeira coisa que eu quero ter comigo nessa viagem são os sorrisos. Não posso sequer pensar em viver uma eternidade sem eles. Ninguém pode. Vou levar os de minha família direta, é claro, e de todos os meus parentes, distantes e próximos. Deles todos, só o sorriso. Pois é a única coisa que importa. Da mulher amada vou levar um pouco mais: umas broncas que levei, até algumas “caras feias”. Isso é para que ela fique completa e mais real. Vou precisar disso, pois pode ser que ela demore para me encontrar. Além disso, a cara de zangada que ela faz, realça seu sorriso. Pensando bem, vou levar também o sorriso de desconhecidos. Os furtivos. Os de passagem. Os sutis. Os que eram para acontecer e não aconteceram. Todos vou levar, menos os maliciosos. Não quero malícia nenhuma na minha eternidade. Vou separar uma mala especial para os sorrisos que ganhei das crianças. Até aqueles bem curtos, tímidos, e aqueles que ganhei por acaso. Eu não citei ainda, mas os sorrisos dos amigos são imprescindíveis, claro que vou levar!
Tenho ainda de levar as cores, as formas, os aromas , os sons e as sensações deste planeta. Preciso levar as cores estáticas e as em movimento. Sons coloridos e cores aromáticas, formas sensacionais, além das sensações sem sentido para o Senhor me explicar. Quero levar os sussuros, os suspiros de emoção, o cochicho de amantes, o chilrear dos pássaros, o som do vento e o silêncio das ondas do mar. O balbuciar das crianças: o das minhas e de todas as outras, para assim fazer uma grande sinfonia universal. O barulhinho imperceptível dos bichinhos do bosque, aqueles que não querem se manifestar.
Dizem que o pôr de sol é um quadro pintado por Deus todas as tardes.Terei que carregar tudo que dá. Imagina o que vai ser se Ele achar que nem notei aquelas cores todas, maravilhosas, cheias de luz, pinceladas com maestria divina num fundo anil? Vai achar que sou um imbecil.
Preciso levar as palavras faladas e as escritas. Vou levá-las individualmente – muitas têm sua beleza pessoal – mas vou levá-las também em frases e em livros: Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Mário Quintana, Machado e o Rosa. Escritores, na verdade, vou levar todos que conheço, até os estrangeiros. Poetas, seresteiros e também os cheios de prosa. Vou ter tanto tempo por lá... Vou ler os que não li e reler os que já li. A palavra falada, as peças de teatro e os filmes que eu vi, nenhum posso esquecer: o Forrest Gump, o 2001, O Tomates Verdes Fritos e até a Cidade de Deus. Afinal, assim como o céu, a cidade é d’Ele, por que eu não a levaria? Além disso, quero prestigiar o cinema nacional. Como eu faria para me gabar com os anjos? Como provar que conheço toda essa arte, sem levar as evidências comigo? Por falar nisso, vou levar também umas fotos da Tônia Carrero e da Bibi. Existem peças de teatro que eu nunca esqueci. E a palavra cantada, então? Preciso levar tudo que é possível. De Chico a Tchaikovsky, passando por Gal, Gil, Adriana, Elis, Rita Lee, os Mutantes e toda a turma. Mas não pense que vou me esquecer da velha guarda, pois não vou não: Lupicínio, Cartola e entre outros mais, os Demônios da Garoa. Fiquei em dúvida a respeito desses últimos, mas depois me decidi. O Senhor sabe que esse nome é só de brincadeira, demônios é a única coisa que eles não são. Nem pense que vou deixar de lado os Beatles. Imagina...
Quem sabe levar alguns livros de Física Quântica para finalmente o Senhor me explicar. Eu gosto tanto mas é tão difícil de entender. Já pensou: múltiplos universos, subpartículas, prótons, fótons e o paradoxo do tempo, tudo explicadinho, tim- tim por tim- tim, por Ele mesmo? Como disse, tempo é o que não vai faltar, absolutamente, apesar da relatividade... um dia consigo entender.
Meu Deus, tenho tanta coisa para levar. Pensei até em pegar um pouco de mágoas, tristezas e dores. Só uma amostra. Só para lembrar que elas são insignificantes, inúteis e passageiras. Talvez explicar para Ele como foi que aguentei tudo, mas acho que Ele já sabe. Mas depois pensei, se elas são insignificantes mesmo, então vou deixá-las por aqui. Além disso, quando tentar procurá-las, não vou conseguir mais achá-las, juntá-las. Estarão perdidas nesse mundão infinito de coisas boas e bonitas. E tem mais: as minha malas já estarão todas cheias e não haverá espaço para elas. O dinheiro, como sempre, vai estar curto, contadinho, e não estou a fim de pagar excesso de bagagem...
oooooOOOOOooooo
Histórias do Futuro