IDIOSSINCRASIAS


 
De vez em quando eu saio de mim, num exercício de alteridade, de mentepsicose, de viajar num cordão de prata budista, e começo a me observar, a ver minhas peculariedades, minhas esquisitices. A estranhar minhas entranhas. O que vejo são minhas manias e hábitos, especialmente no campo alimentar. Gosto de comer arroz puro com couve ou rúcula. Comer doce, especialmente pé de moleque, com café preto. Comer sopa ou macarrão com farinha de mandioca. Comer couve refogada ou com azeite resfriada na geladeira. Beber água em copo de alumínio. Comer de pé, à americana. Comer casca de mixirica. Chupar mixirica como se fosse laranja, descascando-a até o meio. Tenho também outros estranhos hábitos. Não posso ver tapete desalinhado, que eu de pronto o alinho. Me dá agonia ver gente comendo sopa, retiro-me na hora. Assistir filme sem legenda parece que falta alguma coisa, mesmo dublado. Quanto aos nacionais, também merecem legendas, que é uma forma de conciliar cinema e literatura. Gosto de cachorros, mas não os tolero dentro de casa. Preciso dormir do lado direito da cama e encostado na parede. Dormindo, pelo menos uma parte de meu corpo deve estar descoberta, como o personagem de Melville em "Moby Dick", para assim ter algum conforto. Fumar um cicarro pela metade, e imediatamente acender outro, para fumar um inteiro. Bem, tenho essas e mais umas cem manias, de resto acho que sigo a média de nossa cultura. Fernand Braudel, um historiador francês da "Escola dos Annales", afirmou que por um cheiro de cozinha se reconhece uma civizilação. Já Ortega y Gasset afirmou que "eu sou eu e minhas circunstâncias". Já Hume, em "Tratado da Natureza Humana" entendia que são os hábitos que nos ensinam a fazer a conexão entre as coisas. Parte dessas conexões são mediadas pela cultura, pelo alterego do mundo. Mas isso não faz o indivíduo, esse também é composto por suas extravagâncias e suas idiossincrasias, daquilo que não é cheiro de cozinha nem circunstância. Isso nos dá a particularidade, a singularidade, o que não se repete em ninguém em sua totalidade. Parece-me que não é vaidade ficar dissertando sobre mim mesmo, só quero afirmar minha universalidade, mesmo sendo cheio de excrescências. Não tem problema, e como acertadamente afirmou Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Ou melhor, a norma é a diferença.