Asas da liberdade
O resultado da negligência foi implacável. Num segundo lá estava ele na cumeeira da casa com seu colorido vivo em tom amarelo carregado, mais parecido com gema de ovo de galinha caipira. O bico avermelhado como colorau reluzia sob o sol de final de tarde. Parecia assustado, mas determinado. Foi corajoso o suficiente para alçar vôo, mesmo sem estar preparado. Ainda tentei convencê-lo a mudar de ideia utilizando a escada e uma boa dose de paciência. Em vão, pois o primeiro movimento em sua direção mostrou-me que o instinto da natureza falou mais alto. Bem alto, aliás. E lá se foi meu amigo psitacídeo, agora à mercê das inúmeras ameaças urbanas.
Procuro não pensar que o companheiro de cinco anos de prazerosa convivência possa ter se transformado num saboroso petisco nas garras de algum bichano errante ou no bico pontiagudo de uma insensível ave de rapina. O Agaporne fazia parte da família e reconhecia cada integrante da casa. Da filha mais nova nutria nada dissimulada indiferença e pela desproporção natural da compleição física entre ambos, assemelhava-se a Davi no combate com o gigante Golias. Havia a necessidade de cuidados especiais para que a negligente ave não se envolvesse num acidente de percurso como uma bicada dolorida ou algum pisoteio indesejado, visto que a índole do empenado não era das mais pacatas e constantemente fazia questão de deixar isso bem claro, mostrando que tinha mesmo vontade própria.
Nesses tempos de modernidade virtual e liberalidades exageradas, vislumbramos algumas similaridades entre as diversas espécies animais que ensaiam seus primeiros voos. O filhote do ser humano é um deles. Logo ao despontar das primeiras penugens, observam-se algumas evidências da busca pela tão sonhada liberdade. Indiferentes aos perigos que os cercam, desafiam constantemente os ensinamentos recebidos no lar, mal sabendo que os buços juvenis não lhes conferem (por enquanto) a condição de sincronismo perfeito do corpo com o desenvolvimento emocional que tanto necessitam. É preciso, então, o apoio e o acompanhamento incondicional dos pais, que têm o dever de compartilhar a evolução (muitas vezes) turbulenta dessa transição.
Mesmo com a família oferecendo o ambiente propício para que o jovem tenha as condições ideais de descobrir o mundo de forma equilibrada (equiparada àquela gaiola dourada do meu pássaro fujão), o rebento ensaia voos mais altos. Sem a estabilidade direcional de suas imberbes asas, não raro acabam caindo nas garras afiadas do mundo das drogas ilícitas, das más companhias e dos inúmeros exemplos de desagregação familiar. A lapidação do caráter deve ser diária, de forma a conduzir os filhos para a liberdade com sabedoria e responsabilidade, requisitos indispensáveis da iniciação na arte do voo controlado. Isso inclui ainda uma providencial aparada de asas, quando e se necessário for.
Parafraseando o grande poeta Mário Quintana faço aqui o uso de um de seus numerosos versos, pois me vêm às lembranças as alegres estripulias do meu sumido amigo empenado. Essas (infelizmente) passarão. E eu aqui sozinho, passarinho.