Recordar é uma viagem.
Carlos Sena 

 
 
Se recordar é viver eu não sei. Prefiro "viagem" e  acho essa tradução muito supimpa. Então, hoje eu decidi viajar. Puxei pela imaginação e ela me ligou aos tempos da infância lá na minha terra papacaceira. Peguei-me lembrando do torreiro que mamãe fazia. Pois é. A gente chamava torreiro. Torresmo eu comecei a chamar aqui na cidade grande. Lembrei também que um dia, entre amigos, a gente discutia sobre a masturbação. E logo veio o mito de que em cada masturbação era uma colher de sangue que a gente perdia. Morri de medo! Mas, isso não nos impedia de "fazer justiça com as próprias mãos", pois o que mais nos restaria enquanto adolescentes? E no rol dos mitos a gente sempre discutia que as meninas poderiam engravidar se na bacia da privada tivesse resíduos de esperma. A gente se redobrava em cuidados para não deixar respingar no vaso sanitário, principalmente os amigos que tinham irmãs mocinhas. Lembro também que mamãe dizia que se chupasse manga não bebia leite. Depois do almoço ir tomar banho? Poderia dar congestão, nem pensar. Leite? Era mesmo o da vaca ali, quentinho no fogo de lenha.  No Recife deu trabalho tomar leite de saquinho gelado. No rol dessas viagens a lembrança me joga no chão quando eu me lembro que um dia mamãe me corrigiu porque eu disse "berguilha": braguilha, vociferou! Até hoje eu jamais disse berguilha, embora ouça muita gente em minha volta assim dizer. Certo dia comendo uma banana descobri ser gêmea. Mamãe disse que não comesse, pois, quando eu casasse teria filhos gêmeos! E o cabilouro? Dizia-se que quem o comesse atrás da porta ficava bonito. Pois eu fui comer atrás da porta, pois dos filhos de mamãe eu era a peste de feio. E continuei feio, tal qual o patinho do mesmo nome. Feio e mago de ruim... 
Houve um tempo em que eu, de fato acreditei até em cegonha, pode? Certo dia, sabendo que mamãe ia parir fui pro fundo do quintal pra ver o exato momento em que a cegonha abrisse as telhas e soltasse o neném. Santa ingenuidade! Mas essa viagem teria que terminar porque o destino de quem morava no interior era vir pra capital. Em aqui chegando fui logo pra universidade. Logo aprendi que torreiro era torresmo. Que se podia comer manga e beber leite sem morrer. Que leite gelado é ótimo. Que masturbação não implica perda de uma colher de sangue e que mulher não engravida ao sentar na privada. Aprendi coisas  úteis e outras nem tanto. Mas, o que a cidade grande não me ensinou, embora tenha tentado, foi me fazer perder o caminho de volta pra minha terra. Lembro, por fim, que minha avó "mãe Jó" quando me via brincando na rua gritava "entra pra dentro menino". Já em RECIFE eu aprendi que eu poderia ter entrado "pra dentro daquela casa" e não saído nunca mais. 
 
Carlos Sena