A mulher sem rosto

Cinco horas da manhã. Nem precisava de despertador, pois o som característico do calçado de salto alto indicava que a mulher sem rosto descia a rua sem pressa, mostrando confiança. Por muito tempo, o ruído inconfundível do caminhar da vizinha de algumas casas acima martelou em minha cabeça. Nunca a via pessoalmente, nem eventualmente pela cidade. Mas sabia que era ela. E que possuía muitos calçados, pois tinham timbres diferentes e bem definidos. “Deve ter bom gosto”, pensava eu. E dinheiro para comprá-los, evidentemente. Frequentemente imaginava a figura quase surreal daquela que sem saber, substituiu meu despertador por anos a fio. Seria uma morena de olhos verdes, cabelos longos e bem cuidados, pele naturalmente bronzeada e um sorriso de fazer qualquer homem derreter-se por dentro? Ou a misteriosa de costumes matutinos apareceria como uma loira fatal, olhos azuis como o céu, batom vermelho nos lábios e pose de madame? Usaria um perfume de fragrância marcante, típico das mulheres que detêm o poder em todas as circunstâncias? O tempo se encarregaria de dar a resposta, que muitas vezes não corresponde com nossas expectativas, uma vez que procuramos criar uma imagem que atenda aos devaneios da mente.

Mas ela era real e sua pontualidade impressionava. Nem a agitação natural dos animais de estimação conseguia dissimular sua presença. Tomei conhecimento somente tempos depois que trabalhava numa usina de açúcar a alguns quilômetros da cidade. Decerto exercia funções administrativas, a julgar pela indumentária, obviamente analisada de baixo para cima, única referência possível até o momento. Ocuparia algum cargo no setor de recursos humanos, departamento pessoal, financeiro, gerência ou até mesmo na diretoria? Essa dúvida me levou a algumas tentativas para desvendar o mistério da madrugada, sem sucesso.

Eis que numa bela ocasião a dama da noite materializou-se diante de meus olhos. Fui tomado pela ansiedade ao ouvir aqueles passos ritmados, procurando visualizar antecipadamente o vulto da diva imaginária que povoava meus pensamentos. O que teria a lhe dizer, se me permitisse tal ousadia? Como seria retribuído, uma vez que jamais havia lhe dirigido uma palavra sequer?

Finalmente, aquela que por muito tempo foi a responsável por determinar o início dos meus dias de trabalho estava bem à minha frente. E para minha surpresa, estendeu-me a mão num cumprimento cordial, elogiando minha disposição em levantar tão cedo. Era uma simpática velhinha de origem nipônica e compleição mirrada, calçando um tamanco característico daquele país oriental. Contratada como cozinheira, fazia do trabalho uma terapia em sua vida. Estava desfeito o mistério da mulher sem rosto. E de todas as que passaram pelas calçadas de minha vida. Sejam elas loiras, morenas ou ruivas, com ou sem o aroma perfumado do imaginário humano. Hoje não ouço mais aqueles passos em minha calçada. A vovó deve ter se aposentado. Que pena!