A latere 3
Humanos caminhos
Posso ir e deixar aqui o corpo. Sei que é outra suavidade ir de modo abstrato, teórico, sem a carga das dores que acompanham tudo o que tenha sangue e se encha de vontades, hormonas e grilhetas. O pior é que, em algum momento desse ir ideal, me bate a sede de regresso, a saudade das pedras, o gosto pelo que preciso desbravar em ti ou beber na tua boca. E sinto, como Kierkegaard descreveu, um imperioso desejo de definir o meu próprio caminho, a minha liberdade aqui. A ponte entre a lama e as alturas em que Deus habita existe, disse-o também como filósofo, poeta, teólogo e crítico social Kierkegaard quando, dos templos podres da Dinamarca, se ausentou a fé. Mas o diálogo entre a carne e a alma foi sempre de surdos. Falava a espiritualidade mas o corpo, cheio de vícios, só vagamente ouvia novas da eternidade. Por isso a ponte se reservava ao homem livre, individual, ao que, apesar da confusão e da angústia, definia a sua vida com autonomia. Se Deus via? A quem porfiasse no percurso, sim. Todos se depuravam nela antes que o outro extremo tocasse a imponderável vizinhança dos anjos. Jean-Paul Sartre nunca subiu a ponte mas desceu-a para levar a abstração aos homens. Ao recusar Deus, chegou ao Existencialismo que dita a liberdade e exalta o indivíduo. Sem prémios nem castigos, tudo pode acontecer a qualquer um num mundo absurdo. De alguma forma é isso que dizem também Camus, Kafka e Dostoievski.