A latere 2
As Palavras
( Homenagem a Mário Cesariny de Vasconcelos)
Conheci de perto um grande poeta cujo divertimento era brincar com as palavras. Escolhia-as a dedo no jornal ou nas revistas que lia. Olhava-as com olhos de ver muito para lá da primeira impressão. Algumas não respondiam ao seu sorriso. Eram simples e antipáticas. Tudo o que havia para pesquisar de suas vidas e função ficava exposto, como se fossem meninas virgens amuadas. Derivando-as, poderiam dançar numa festa das ideias sem grande resistência. E ele, o Poeta, arranjava-lhes companhia em prefixos e sufixos desocupados, fazia-as entrar em outras comunicações sensuais para as tornar o que quisesse, de advérbios de modo a neologismos de rara beleza. Muitas palavras sentiam-se forçadas a mudar até de textura, de caráter, de companhia e algumas das mais agressivas, só castigando-as mudavam o rigor fanático do seu estar. A estas, como quem lhes arrancasse as unhas, tirava-lhes letras, tapava-as com uma espécie de burka feita a bico de caneta e poupava-lhes o espírito que se via a saltar do escuro como uma ideia brilhante. Às vezes o que se via era pouco mais que uma sílaba; outras, forçando a entrada de novas vogais nas palavras escolhidas, obrigando os ss e os rr a horas extra, alterava de tal modo a produção que, não raro, acontecia a gargalhada no choro dramático dos conceitos, a indiferença a escapar por construções antes amorosas e o ódio a expor-se como exemplo da bandidagem que está, queiramos ou não, potencial em todos os dizeres. Só posso ter amor se ninguém apresentar o prefixo des, de reputação mais que duvidosa, à ternura da palavra simples original.