Mãe Postiça

Fazia menos de quatro décadas que a escravidão havia oficialmente acabada. Oficialmente. Pois de forma sutil persistia quanto aos preconceitos e nas formas sociais: as mazelas e as misérias.

Na casa dos agregados ela nascera. Aquela que nada possuía além de sua condição: mulher, negra, filha de ex-escravos, fruto do tempo de violências e de exclusões.
Como nascera também adolescera. E foi como adolescente ainda que ela ficora grávida. E como abortar era pecado maior para aquelas mentalidades religiosas de seu tempo – muito mais que ser negra, mulher, solteira grávida – tivera o filho. As soluções oferecidas pela sociedade era que os avós criassem o filho para que fosse mais um moleque de serviços para os brancos e para a mãe adolescente restava completa exclusão.

Que ela fosse servir os prazeres masculinos nos bordéis já que caiu na vida. Ou que os senhores oligárquicos da propriedade onde seus pais, avós da criança nascida, eram agregados, lhe enfiassem na Assistência dos Alienados – de certo ficara doida cedendo às curiosidades do corpo e à sedução de quem lhe gerara o filho. Ou ainda, que fosse servir na casa da filha dos proprietários da fazenda recém-casada.

Escolheram para ela esta última opção por parecer mais digna dos valores cristãos: não podia solteira criar seu filho, que seria apresentado como seu irmão, mas tinha que cuidar das tarefas da casa dos brancos, inclusive cuidar dos filhos do casal que nascera. Era a única inclusão que a sociedade oferecia: ser serva na casa alheia para sobreviver.

Chegara com lenços. Um ela trazia na cabeça para cobrir sua vergonha. No outro ela trazia, como uma pequena trouxa, seus pertences: um vestido, uma muda de roupas íntimas feitas de panos ordinários, um pente para a gafuringa e um vidro de “Leite de Rosas” – seu único perfume de toda a sua vida.

Naquela casa ela havia de cozinhar, limpar, lavar a roupa e cuidar das crianças. A primeira filha do casal era nascida e outras tantas nasceriam como era o costume de casais terem muitos filhos. Seriam seus filhos também.

A terceira filha seria sua afilhada. Nesta altura da servidão e patronagem ela, a negra, já era considerada membro da família. O sétimo filho e último que o casal tivera se tornou o xodó da negra. Era não só o caçula da família, mas o seu também. Por ele ela movia céu e terra a ponto de causar ciúmes nos outros.

E assim foi. Teve que abrir mão de seu filho, não que quisesse, mas fora-lhe imposto pela sociedade, para cuidar do filho dos outros, seus filhos postiços.

A toda aquela gente viu nascer, crescer, casar, ter filhos. Não os viram morrer, exceto o seu xodó que morrera homem feito e casado.

Morreram seus patrões, agora seus amigos, e por fim morrera também como morrera o seu tempo de muita injustiça social, de exclusão e de muitas hipocrisias.

Em respeito a sua abnegação como pessoa, por sua sobrevivência às injustiças sociais e em agradecimento pelos seus cuidados homenageio a todas as mães postiças: babás, amas de leite, adotivas e serviçais.

No segundo domingo de maio comemorou-se o dia das mães. Fica aqui registrado esta referência e reverência à minha mãe postiça. Porque “a minha história é construída mediante a história do outro.”

Mais de cem anos se passaram em que a escravidão foi abolida oficialmente. E ainda há muita injustiça social a ser corrigida e que se escondem nas formas religiosas de ser, preconceitos étnicos manifestos e incutidos de pensar, e formas excludentes educacionais e trabalhistas.

Arremato esta crônica com o pensamento de Vera Rosenbluth*:
“Quando repartimos nossas histórias com os outros, celebramos nossa parte mais humana – ofertamos nossa história como presente.”



Leonardo Lisbôa,
Barbacena, 13/05/2015.

*Em Manual de História Oral de José Carlos Sebe Bom Meihy, Edições Loyola.

Foto:
1. Paulo Lisbôa
2. Maria Silvéria Lisbôa
3. Leonardo Lisbôa
4. Odila Congo Pinto

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Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 14/05/2015
Reeditado em 14/05/2015
Código do texto: T5241273
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