Anos de guerra.

A minha mãe sempre falava comigo sobre o período da guerra e da pós guerra , nos anos entre 36 e 45, que vivera na sua infância em "San Fernando" ( Andaluzia), pois sentia uma enorme necessidade de falar, e sentada à mesa da cozinha narrava os fatos com tanta riqueza de detalhes, que a minha imaginação de criança voava para aqueles anos de ferro, e me transportava em pensamentos para acompanhá-la.

_ Os soldados italianos eram os mais alegres entre os que passaram pela pequena cidade costeira. Primeiro vamos nos situar; "La Isla" (como é chamada), é também um porto para navios de guerra, por um dos seus costados, com estaleiros para reparos, diques e desembarques de tropas, as crianças esfomeadas se aproximavam dos soldados que descansavam próximo à fonte da praça, e lhes pediam chocolate, apesar da censura dos pais, pois a barriga sempre fala mais alto do que a obediência.Os chocolates de guerra não eram como os de hoje, e sim escuros, duros, feitos para resistirem as intempéries, mas alimentavam. Havia sempre o risco do abuso, pois são homens fora da pátria, à beira da morte , onde a razão está sempre por um fio. Os italianos , alegres e irreverentes ,eram os que mais se aproximavam , mas ela estudava a distância as fisionomias antes de pedir alguma coisa, e vieram também tropas marroquinas, com suas vestimentas diferentes, com turbantes ou barretes vermelhos, caras de poucos amigos, muito perigosos ,portavam armas brancas , que ostentavam sem cerimônia, eram da colônia espanhola na Àfrica ( Marrocos) , e odiavam tudo aquilo, e aquele povo branco, numa guerra que não lhes dizia absolutamente nada, e os nacionalistas espanhóis que seguiriam para Madrid.

Contava-me das pessoas que comiam alpiste, por falta de provisões durante os piores anos, e não resistiam, pois apesar dos passarinhos comerem, as pessoas não podem fazer o mesmo , o nosso organismo não tolera .é diferente do trigo ou da cevada.

A poucos quilômetros estava a "quinta" ( chácara) da avó da minha mãe, onde ainda havia algum plantio, frutas, e um pouco de leite das vacas magras, já que boa parte do pasto estava perdido , resultado das bombas , e ela caminhava pela estrada até "Puerto Real", pequena cidade vizinha, onde estão as salinas,e ao menor ruído das tropas, adentrava entre as árvores e o capinzal, permanecendo amoitada até a passagem dos comboios.

Conto aqui um pedaço da infância da minha mãe, relatos que me fez ainda criança, e que ela levou a vida toda, nunca porém podendo se livrar desse passado sombrio , e que na idade adulta a levou a várias internações em clínicas psiquiátricas, porque se perdia no tempo em graves quadros de esquizofrenia, e as vezes permanecia internada por dois ou três meses, até a sua derradeira despedida. Ironicamente sempre me coube a missão de ouvi-la em criança, e anos depois , interná-la, o que ela nunca compreendera, me questionando sempre, do porque fazia aquilo . Se ela soubesse ,tivesse a noção exata do seu real estado de razão, e o quanto isso era difícil para mim, não me questionaria uma única vez. Durante as visitas de domingo na clínica, ainda dopada, mas já reconhecendo as pessoas, embora bastante confusa, abraçava o meu pai, e o meu irmão, e eu me mantinha a certa distância , esperando que compreendesse , o que nunca aconteceu.

Aragón Guerrero
Enviado por Aragón Guerrero em 12/05/2015
Reeditado em 14/05/2015
Código do texto: T5239767
Classificação de conteúdo: seguro