O macarrão da redenção

“Não há motivo para festa, a hora é essa, eu não sei rir a toa, fique você com a mente positiva, eu quero é a voz ativa ela é que é uma boa.” (Belchior)

Domingo. Hora do crepúsculo. O mesmo poente alaranjado que me assombrava quando criança com promessas de punições infernais volta a se impor, atenazando terrivelmente meu peito. Depois de ter juntado as últimas moedas, vasculhando todos os bolsos, reuni o suficiente para meio quilo de macarrão e o extrato de tomate, na minha despensa ainda tem a indispensável cebola de cabeça, três batatas inglesas e palmo e meio de lingüiça pirraça. O macarrão da redenção está garantido. A sopa é tradicional lá em casa nas noites de domingo e sempre tem público cativo. Um ou outro daqueles amigos que começam na sexta uma jornada de tortura ao estômago e ao fígado sempre aparece para a redenção dos sacrificados órgãos.

Caminho devagar, arrastando calmamente os chinelões. O único estabelecimento aberto essa hora no bairro onde eu possa encontrar o que preciso é um bar mercearia da Rua Sergipe a quatro quarteirões de minha casa. Vou pensando na minha situação de brasileiro lascado, que passou a vida trabalhando feito uma formiga e continua tão insignificante quanto uma, mesmo assim, quase feliz, nessa altura da vida quando a gente percebe que a chance de sentir-se bem, de acalentar a alma oprimida é fazer como diria o poeta J. G. de Araújo Jorge: ir “reduzindo as proporções dos nossos sonhos... (aquelas aspirações que eram como viagens a Marte).”

Nas árvores da Praça da Matriz um número incalculável de pardais, centenas, talvez milhares, fazem uma barulheira doida. O passarinho europeu importado para combater uma praga de mosquitos, por idéia de uma mente brilhante da corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro não resolveu aquele problema, mas acabou tornando-se outra praga, que as corujas até apreciam, quando escurece elas dão um mergulho certeiro na ramagem e saem com a refeição no bico. A rua da feira, que pela manhã estivera repleta de barracas e gente, está agora vazia, passa por ela um Gol quadrado em estado lastimável, tocando um funk numa altura ensurdecedora, os auto falantes com as películas estouradas emitem, juntamente com o hit, uma ronqueira medonha.

_ Crendeuspai! Exclama um bêbado meu conhecido. Que gosto! Heim?

_ Ah! Eu até que gosto.

_ Mas ocê tamem num serve de base. É doido. Dê cá um real.

Ai! A verba já está curta, mas eu posso abrir mão do extrato de tomate se for o caso. Estendo-lhe a moeda. Ele a apanha sôfrego.

_ Valeu!

Uma quadra abaixo, seguindo pela Fernando de Noronha, uma jovem mãe está sentada à frente de seu barraco de dois cômodos alugado, tem uma expressão de profunda desesperança, a criança de dois anos mais ou menos brinca no passeio indiferente ao que se passa no mundo. À porta do comércio, nas mesas colocadas na calçada homens ligeiramente alterados pelo álcool travam uma discussão acirrada sobre o embate a ser travado entre Atlético e Caldense. Entro, procuro pelos itens a que vim, tendo o cuidado de ir calculando mentalmente os valores, cismado de que meus parcos recursos não sejam suficientes. Volto no mesmo passo lento. Resolvo subir pela Rua Acre, onde há de um pé de Dama da Noite florido, que a essa hora começa a exalar o seu perfume adocicado e intenso.

Ocorre-me de repente: em que esquina terei deixado a poesia que encantou os dias felizes da minha juventude? Onde o idílio? A esperança?

O perfume da Dama da Noite já pode ser sentido. Transporta-me para outros tempos, outros lugares... Percebo de repente que a vida agora deve se comprazer com pequenos deleites como este. Como aquele outro de preparar com bastante esmero o macarrão da redenção, pra saborear com algum amigo que aparecer.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 09/05/2015
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