Um grande amor
A avó por diversas vezes lhe convidou para almoçar em sua casa. Por vezes ela pensou em aceitar, mas os compromissos ora de trabalho, ora pessoais, impediam o encontro. Não sabia ao certo se a recusa era por falta de tempo ou de coragem para ver o avô, agora ainda mais debilitado, acamado, que por raras vezes reconhecia a própria mulher. Tinha-os como exemplo de amor, de casamento, de companheirismo. Cresceu admirando o cuidado que um tinha pelo outro. A menina, agora uma mulher, era travessa, gostava de mexer na caixa de ferramentas do avô e para ganhar a confiança dele, só o fazia quando ele estava por perto. A avó acobertava suas travessuras, lhe enchia de mimos e isso lhe dava proteção. O casal gostava de reunir a família e amigos em reuniões e festas em sua casa. Não conseguia imaginá-los separados. Pareciam únicos. Suas melhores lembranças de infância são ao lado deles, por isso lhe era penoso vê-los infelizes.
Naquela manhã decidira, então, lhes fazer uma visita de surpresa. O casal vivia sozinho num pequeno sobrado cercado por um jardim. A avó fazia questão de cuidar de tudo, deixando apenas que uma enfermeira a ajudasse a cuidar do marido. No caminho, a neta se preparava para o encontro, embora soubesse que devia se silenciar diante da situação. Pensou em desistir da visita por diversas vezes, quando se deu conta que estava frente à casa. A avó lhe avistou pela janela e foi até o portão, com um sorriso diferente, talvez triste. Ambas fingiam naturalidade e conversavam diferentes assuntos ao mesmo tempo. A neta percebera algumas mudanças na casa, talvez para adaptação de um doente, que agora precisava constantemente de cadeiras de rodas. Depois de algum tempo a avó levou a moça até o quarto onde o avô passava a maior parte do tempo. O quarto era arejado e bem decorado, e logo que entrou avistou alguns objetos pessoais do avô expostos numa cômoda ao lado da cama. Ele despertou assim que elas entraram e ficou olhando fixamente para a neta, e logo depois estendeu a mão para a mulher. Ambas se aproximaram, cada uma de um lado da cama. Embora não a reconhecessem, parecia que gostava delas. A avó ficou o tempo todo acariciando o marido, enquanto contava entusiasmada à neta sobre alguns avanços do tratamento. A esperança era o que acalmava a dor e o medo daquela mulher, enquanto a neta reconhecia neles a mesma cumplicidade e união. O velho de cabelos brancos, corpo magro e debilitado, de olhar perdido nas lembranças, continuava sendo o amor que a avó cultivou durante toda a vida. Ainda que seu amor não a reconhecesse, ela o reconhecia e o amava. Para lembrá-lo de tudo o que marcara a união de tantos anos, a avó levou para o quarto a caixa de ferramentas que utilizava para os pequenos consertos da casa, a vara de pescar, companheira de todas as férias com os filhos e depois com os netos, o velho acordeom, que atravessou gerações e animou muitas festas e, por fim, muitas fotografias espalhadas pelo quarto e guardadas num álbum ao lado da cama. Disse a neta que todas as noites contava ao marido um pedaço de cada história que viveram juntos, na esperança que ele lembrasse e voltasse a ser quem era antes.
Silenciosa, a moça apenas observava a força do casal, a confiança que demonstravam ainda um pelo outro. Ele apenas olhava a mulher, enquanto ela cuidava da transcendência desse amor, que era forte o suficiente para emergir da dor. Naquela manhã a moça aprendera coisas importantes sobre a vida a dois: que o amor é muito mais que palavras, são atos de generosidade e cumplicidade; que não basta apenas viver bons momentos, é preciso relembrá-los, mesmo quando o outro já não lembra mais; e que o verdadeiro amor é um compromisso para a vida inteira, ainda que vida um dia interrompa esse amor.