No jardim do perdão

Oito da noite. Um doente morre sozinho num quarto da Santa Casa. Pablo entra para visitá-lo, temeroso, vacilante. Esforça-se para se lembrar de alguma coisa boa desse homem, um detalhe que seja, mas não consegue. Desde a sua primeira lembrança da infância, até hoje, dele só tem más recordações. Tio ranzinza, intolerante, que por qualquer motivo lhe repreendia, aos gritos, ou lhe dirigia olhares de escárnio; porque Pablo era diferente das crianças que ele admirava: bem comportadas, educadinhas, certinhas. Pablo não era assim. Era uma criança saudável, feliz, amorosa, mas não se enquadrava em determinados padrões, por mais que os pais tentassem cercá-lo, direcioná-lo.

Hoje sabemos que Pablo só era ele mesmo; não virou nenhum monstro, muito pelo contrário; é um bom rapaz.

Agora, ao visitar o tio que agoniza, Pablo tenta não deixar vir à tona os gritos de repreensão, as ameaças, o menosprezo; mas não consegue; é só isso que vem. “Sai daí, menino!”; “Se você não parar com isso agora, vou dar na sua cara!”; “Esse menino não tem jeito”; “Olha lá, que absurdo!”. Esforça-se verdadeiramente para tirar alguma coisa boa da memória, um sorriso de afeto, um olhar de compreensão (verdadeiros!), mas não consegue, e sofre com isso, porque quer perdoar o tio, quer se despedir dele com um pouco de amor no coração, um pouco de saudade, de gratidão.

Pablo está agora bem próximo da cama. Não vai dizer o que não sente, mas segura a mão do tio, que abre os olhos e o reconhece. Não são olhos opacos e sonolentos, como Pablo esperava, mas expressivos, cheios de vida.

De repente, como num filme, Pablo vê passar em sua mente fragmentos da história do tio, da sua vida (luzes e sombras, brisas e tempestades), e sem muito esforço, humildemente, coloca-se no lugar dele, procurando sentir o que ele sentiu, viver, pelo menos um pouco, em pensamento, o que ele viveu. E o perdoa.

Com o coração pleno de uma paz indescritível, Pablo se vê num jardim todo florido, cor de céu, apertando a mão do tio, que sorri. Nenhuma palavra é dita, mas tudo é entendido.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 08/05/2015
Código do texto: T5234615
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.