Horas Marcadas
O relógio na parede fria e suja marcava dez horas. Ela olhava seminua e amordaçada para aqueles ponteiros que não saiam do lugar. A janela de grades e vidros colados com massa epóxi deixava entrar uma luz tacanha pelas aberturas da cortina amarela, de vez em quando um vento se intrometia e fazia ela se mexer descortinando um céu pálido do interior dos seus olhos. Em algum lugar sinos repicavam anunciando a missa, ali reuniriam pessoas livres com pensamentos presos em seus pecados, buscariam conforto se ajoelhando de cabeças baixas, depois retornariam aliviados. Carros buzinavam, mas ela não sabia aonde, não sabia o por quê da urgência de sair de onde se encontrava, passar por outro carro que poderia também estar com pressa, ou simplesmente a crua ostentação de poder, a maquina com sifras extravagantes que não aceitava cheirar fumaça de um “dinossauro” da Volks dos idos de 70. Entre uma e outra reflexão sobre as buzinas e os sinos, uma borboleta tentou entrar pela greta por onde seguia o vento, suas asas se embaraçaram a fazendo voltar empurrada pelo deslizar exorbitante do pano, resistente como a vontade de permanecer viva daquela expectadora violentada a borboleta entrou. Por aquele pequeno espaço bateu suas asas como se quizesse reconhecer cada objeto em desarmonia que ali dentro cheirava a morfo e solidão. Ela olhava novamente como as centenas de vezes antes, buscando algo que ia além daqueles ponteiros concretados naquele circulo estático por falta de forças, não conseguia sair do lugar para que o tempo fluisse como deveria passar a vida. De volta a borboleta, viu que aparentava cansaço, parecia ter sede ou algo que lhe arrancara as forças, talvez numa singela associação com o relógio estaria sem as pilhas que liberavam a energia vital. A borboleta era uma Gonepterix Cleopatra, havia lido certa vez em um livro que achara em uma poltrona de Banco. Mas ela estava muito e fraca e caia lentamente, sem a menor força para sustentar o corpo, caiu rodopiando e sem vida. A moça com seu esforço descomunal não conseguiu agilidade suficiente para se soltar das amarras que cortava os pulsos, com um grito sufocado e os olhos ardendo em dor pelo animal tê-la visitado em seus instantes finais, sentiu que seu coração batia com aceleração descabida e uma cefaléia incomoda iniciou a tortura, doia e lhe tirava o ar como mãos apertando-lhe o pescoço, cada movimento brusco que tentava o pavor desatinava sobre a asfixia, o interior da cabeça parecia receber um liquidificador que girava em alta voltagem destroçando as ruinas da razão, uma epistaxe inesperada veio da narina esquerda e jorrou intermitente sem que ela pudesse reagir, uma vez que lutava para restabelecer o fôlego perdido. O cadaver da borboleta permanecia indiferente daquela sensação de morte que a moça experimentava, seus olhos inundados de lágrimas e seu grito que não podia sair. De repente o sino tocou, ordinariamente com as mesmas batidas, ordinariamente com o mesmo agouro, desta vez nada se passou pela cabeça dela que tinha mostros povoando a sanidade, um cheiro de terra molhada em local insalubre e solitário, o sangue agora vinha também da outra narina, jorravam como borrifadores nas direções que a cabeça epileptica se batia. Voltava o rimbombar dos sinos, as buzinas intermitentes, seu grito que era interior se libertara e ecova além daquelas paredes sujas e frias, a borboleta era gigantesca e suas asas cobriam todo o céu, sombras com cheiro de enxofre, antenas que incendiavam ao menor dos toques, a borboleta mastigava o que vinha pela frente e o sangue escorria pelas nuvens negras, os sinos tocavam, a Igreja anunciava que era hora de ajoelhar para pagar pecados, todos deveriam abaixar suas cabeças, serem humildes e pedir perdão, o Padre tinha unhas grandes, orelhas enormes, chifres de bode, cheiro de sangue, um sangue que escorria do altar, a cruz de cristo havia desaparecido, ela enxergava seu corpo bonito observando as flores do jardim e um céu azul de uma linda manhã de sabado, aproximadamente dez horas.