A Carta.
“Minha boníssima madrinha. Almejo ardentemente que estas minhas simples linhas, irão encontrar-lhe com toda prole em pleno estado de saúde”.
Assim, uma jovem de 20 anos, inicia sua amável carta. Acima, no lado direito da folha encontro as letras J.M.J e com ajuda da minha mãe, descubro tratarem-se das iniciais de Jesus, Maria e José, prática comum nas epistolas naquela época.
A gentil correspondência foi datada em 27 de setembro de 1934 e quem a escreveu relata à sua madrinha, os desencontros, as desilusões e as “ingrisias” do seu noivado, desculpando-se por aborrecer a destinatária com suas “tolices de moça”.
Imaginem que o noivo havia oferecido levar outra moça em seu cavalo para que esta se alistasse a votar nas eleições. Um rapaz que não é nomeado na missiva contara para a linda noiva (era linda mesmo) o sucedido e esta resolvera escrever ao amado “convidando-o” a terminar o noivado.
A carta que me chega às mãos tem um sabor especial.Através dela tenho contato com a maneira de viver naquela primeira metade do século passado, numa pequena cidade do interior do estado.
O voto feminino, por exemplo, era muito recente, mesmo aqui no Rio Grande do Norte, primeiro estado a estender o voto às mulheres, em 1928 e é interessante perceber que as duas senhoritas envolvidas naquele imbróglio amoroso estavam aptas a votar e exerciam seus direitos.
O alvo da disputa amorosa, o noivo, também parecia ser atuante politicamente, uma vez que ele as acompanhava nesse exercício da cidadania.
Chamou-me a atenção, também, que muito antes da Internet e até do telefone, naquela região onde o cavalo ainda era o meio de transportes mais usados, já havia quem fizesse o leva e traz entre os casais, ameaçando a felicidade destes.
Claro que não pude deixar de ficar triste com o aparente jogo duplo do noivo, que flertava com outra moça enquanto mantinha oficialmente o compromisso com a autora da carta. Como mulher, me identifiquei com esta noivinha decepcionada e brava, que chegou a ameaçá-lo com o rompimento sem mais “convite a desmanchar”, simplesmente devolvendo-lhe as cartas e “prompto”; ao que este reagiu dizendo que ela não deveria se impor; melhor seria pedir-lhe para que não voltasse a encontrar a outra moça, o pivô da delicada situação.
A carta tem um tom de suspense, pois a noiva avisava à confidente que já não acreditava mais nesse casamento e terminava gentilmente enviando lembranças a todos. Recomendava, também, para que rasgasse a cartinha após a leitura, pois não queria que esta chegasse às mãos de quem não a merecia lê-la.
Como vêm, o pedido acima não foi atendido, pois aqui estou 73 anos após, dando as minhas impressões sobre a correspondência que graças a Deus não foi rasgada.E o faço com alegria pela oportunidade de testemunhar os sentimentos de uma jovem mulher nos anos 30, escritos do próprio punho em letra bonita e texto limpo.
A alegria é ainda maior, pois conheci bem a autora da cartinha, que continuou bondosa, bonita e inteligente até a maturidade.Por fim, comemoro o bom desfecho do desentendimento entre aquele jovem casal, dos mais felizes que pude conhecer: meus avós paternos.
Evelyne Furtado, em 29 de maio de 2007.