Sinal entre o Schwartz Kammel e o Manguai
 
          Quando baixei o vidro para receber o prospecto cheio de edifícios, ela passou o olhar pelo interior do carro, como quem procurasse mais do que queria: - “Nunca escutei música como essa”; seu olhar de surpresa interrogou de onde viria a 9ª Sinfonia de Beethoven. Antes que iniciasse o coral, o sinal abriu, deixando-a longe, ouvindo os acordes misturados com o barulho do trafego e os apitos dos carros... Essa circunstância surpreende o encontro daquela moça, perto do Mangai, em Manaíra, com o distante Beethoven, do Zum Schwartz Kammel, em Viena.
          Atônito, desacreditei que, a partir da 8ª Sinfonia, Beethoven não ouvia a composição das suas obras, mesmo tendo ele seus nervos auditivos atrofiados, sua trompa de Eustáquio reduzida;  “mouco”, como gritavam os meninos insultando-o nas ruas paralelas à Bognergasse. Ao contrário das pessoas que, não sendo surdas, ainda não escutaram música durante a vida; ou que, ao achar a diáfana harmonia monótona, preferem qualquer desarmonia barulhenta. Pensei em voltar e presentear àquela moça meu “pendrive das sinfonias”, mas talvez em sua casa não houvesse “USB” adequado ao pequeno gravador. A força da música transforma tudo em música, nascendo, crescendo, morrendo como os movimentos da música clássica ou a surpresa da moça do semáforo.
          Sim, foi ela que motivou a intuição de que Beethoven ouvia música sendo surdo e que há pessoas que não ouvem música sem serem surdas... Mas, vaticina o povo: “Cor e gosto não se discutem”; já o som amado pelo nostálgico vaqueiro é a orquestração dos chocalhos pendurados nas vacas, nas cabras, escapando das mãos do “tira-leite” ou perdidas nas brenhas e veredas. Embora tenha visto, em fazendas francesas, as próprias vacas ouvindo  Chopin, Dvorak, Mendelssonhn, Liszt , Tchaikovsky, Brahms para renderem mais leite na hora da ordenha mecanizada. Assim, acontece amusia, sucedem “alucinações musicais” ou empecilhos que nos afastam do estético, das artes ou do prazer dos sentimentos... Quando esses sentimentos se afinam na contemplação do belo, a música devém desejada pela beleza que ora vai, que ora retorna... Creio ocorrer também com o leitor: a música mais querida é aquela que se associou às pessoas amadas, a inesquecíveis momentos ou a felizes circunstâncias. Ao ouvir a Nona Sinfonia, a cansada vista vislumbrará um sinal vermelho e a bela adolescente aproximando-se para me entregar qualquer papel e dizer: Já ouvi uma música como essa...
 
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