Três Histórias de Uma
Na minha juventude de criança, eu fui apaixonado pelos cães, ainda sou jovem, é claro, e ainda apaixonado pelos cães. Mas aquela era uma outra época, onde a inocência pipocava como numa panela cheia de milho e manteiga na casa da vovó, e onde eu tinha orgulho de ser inocente. Existia aquela aura de proteção que envolve todas as crianças – graças a Deus – e de nada eu conhecia das mazelas do mundo. Na verdade, mazela nenhuma me importava, e o que eu queria era ser criança, porque naquela época o mundo era todo meu, e eu dividia com quem eu quisesse, e na maioria das vezes, eu queria dividir com todo mundo mesmo! Hoje, ele não pertence a ninguém, só a uns poucos que não o merecem, e ainda tento manter a criança dentro de mim acordada, por que se o pequeno pedaço dela que restou se for, eu vou também. O que me levou a descobrir, muito feliz e grato, diga-se de passagem, que na verdade nunca deixei de ser aquele menino. E embora eu saiba que o tempo é uma ilusão, os meus trinta anos nunca tiveram força o suficiente para esconder a minha meninice. Mas essa história não é sobre isso, é sobre cães, quer você goste deles ou não. Cedo ou tarde descobre-se que não se pode viver sem um cão, o mundo seria muito triste se eles não existissem. Um dia você se tornará uma pessoa que não vai entender quando alguém chamar um político, um ladrão ou um vagabundo – embora todos sejam sinônimos – de cachorro. Porque, pra você, um cachorro será um ser cheio de ternura, carinho, amor e alegria, que torna a rude vereda da vida mais suave, e que se por ventura um ou outro estiver estragado, fora obra humana, como sempre há de ser nas mazelas.
Pois bem, não me lembro na vida de um momento em que eu não tive um cão! Sempre quando um partia, eu arrumava outro, num intervalo mais ou menos longo, e claro, nenhum deles nunca substituiu o outro. E ainda me lembro da fisionomia, personalidade, e afeição de cada um deles, do primeiro ao último! Estranhamente na vida, também sempre me perguntei por que criaturas frágeis aparentemente são tão desamparadas. Atinge-me algumas vezes, perceber o desamparo nos olhos das pessoas mais frágeis, e também dos animais. Sempre me perguntei se haveria alguém por eles, e por vezes, desisti de fazer essa pergunta.
Embora eu cuidasse muito bem dos meus amiguinhos, eles sempre partiam de uma forma assaz estranha, e de certa forma, violenta. Um deles partiu quando colocaram um pó antipulgas nele e o deitaram na casinha, enrolado num cobertor. No outro dia estava morto, e sequer se mexeu dentro do cobertor que o enrolava. O outro, fugiu de casa quando um distraído deixou o portão aberto e ele pulou pra rua direto para as rodas de um caminhão, o eu irmão mais novo viu tudo. Eu não. E por fim, o meu outro cãozinho foi esfaqueado por delinquetizinho da rua de cima, que gostava de maltratar os animais. Sempre me perguntei como teriam sido os últimos minutos deles, eu gostaria de ter estado lá, por que sempre que olho nos olhos de um cão, traduzo o seu olhar como: “fique comigo, não importa o que aconteça!” Eu teria ficado se pudesse... Eu faria muitas coisas nessa vida, se eu pudesse.
Um dia, e isso também é uma outra história, eu fui despertado por um menino que estava de pé ao lado da minha cama. Ele era jovem, não mais que doze anos, doze anos do meu tempo, não os de hoje, que com doze parecem ter vinte! Ele tinha os cabelos anelados e brancos, meio que começando a pender para o lado da cabeça, quase longos. Ficou me cutucando até eu acordar, e logo eu percebi que não havia sido um despertar normal, pois minha esposa ainda dormia e a luz que entrava no quarto definitivamente não era a do poste na rua.
-Venha, desejo mostrar-lhe algo... –Ele falou como alguém que fala com um velho amigo, e eu logo me afeiçoei a ele e confiei nele como se o conhecesse de longuíssima data!
Eu me levantei, calcei o chinelo de pantufa do lado da cama, e ele me deu a sua mão, me guiando para o corredor. Passei pelo banheiro e fechei a sua porta, pois a água do chuveiro pingava, e temi que isso pudesse acordar o sono de princesa de minha esposa. Quando ele abriu a porta de minha casa lá fora não estava a rua, mas sim a cena do meu cãozinho que havia morrido enrolado num cobertor! Eu o estava vendo, no exato momento em que ele estava sendo posto lá, eram mais ou menos seis da tarde. E o meu pai não percebera, mas sobre os ombros dele e por sobre a cabeça, figuras de rostos sorridentes e de flashes de luzes pulsavam feito corações resplandecentes, e eu podia sentir a ternura que ele sentia pelo meu amiguinho, pois que também sempre gostou de cães... E no momento em que ele pousou o meu cãozinho lá e saiu, os rostos que ficaram começaram a tomar forma de corpos com asas enormes, como os anjos da mitologia, e por todo o momentos embalaram o pequeno cachorro nas mãos enormes deles, até que decidiram, por bem, resgatá-lo dali. Eles tiraram dele algo como uma bolha de sabão, que só posso imaginar ser a sua alma, e subindo aos céus como um raio partiram todos, imagino que para o céu dos cachorros, porque todos os cães merecem o céu, como disse alguém um dia.
O meu pequeno amigo, então, puxou-me pela manga da camisa de novo, e sorrindo, pareceu entender o que eu estava sentindo.
-Veja – disse ele, apontando, e agora a cena mudara completamente. Mudara para momentos antes de o meu outro titiu sair e pular na frente do caminhão. De novo vi aquelas formas de luzes descerem como rostos e lampejos de arco-iris, mas muito antes de o meu cachorro pular no caminhão. Lá dentro de casa ainda, quando ele estava deitado debaixo do fogão, foi-lhe libertado a pequena bolha que julguei ser sua pequena alma, de modo que me foi sugerido que não fora exatamente ele quem pulara na frente da roda do caminhão, mas apenas o reflexo nervoso que sobrou no cérebro dele. Ou seja, ele já não estava ali fazia um bom tempo! E, finalmente, pude ver a cena principal, que acontecera quando o marginalzinho com o seu comparsa agarrou o meu cachorro pela coleira, ao enfiar a mão na tela de arame da minha casa, e com uma única estocada enfiar um punhal na barriga dele. Ele foi covarde e traiçoeiro, pois chegou como quem fosse amigo e quisesse brincar com ele, o chamou até a cerca com um sorriso, e lá mesmo o traiu. As luzes vieram de novo, e um par de longas asas desceu abraçando e envolvendo o meu cachorro, de uma forma que nem mesmo eu poderia ter feito. A asa ficou ali, por um longo tempo envolvendo-o, com ternura e dedicação inigualáveis. Eu podia ver a carinha safada do meu cãozinho, palpitando de alegria e satisfação, e percebi que o marginal não fizera nenhum mal ao meu cachorro, mas a si próprio, pois encontrou um destino cruel depois, mas isso também é outra história.
O meu pequeno amigo, percebendo a minha emoção, disse:
-Olhe melhor! – E eu me percebi ali, entre aquelas asas... Era eu a abraçá-lo! Todas as vezes fui eu! Não, não que eu seja um anjo! Mas num futuro distante, nos nossos termos, todos nós seremos! Era um eu do futuro, um eu melhor, mais capacitado, que voltou por todos aqueles que amou, para não deixá-los desamparados. Quando eu percebi, eles me perceberam, porque não era um eu, mas vários eus! Eles sorriram pra mim e piscaram, como se dissessem: -Olá, como vai você! Lembramo-nos desse momento, e estamos com saudades de ti, até nos encontrarmos de novo!
Então tudo se clareou para mim, pois o pequeno que segurava a minha mão era também eu. Não o eu da minha infância, mas de uma outra infância, num outro lugar, num universo paralelo, onde aconteceram coisas diferentes, conheci pessoas diferentes, que me moldaram de forma diversa, mas que no fundo, permaneci eu mesmo, como um espectador de todos os eus possíveis.
Essa foi a história mais longa que eu já escrevi. Não acredito nas palavras, elas não traduzem aquilo que eu tenho vontade e necessidade de falar. É como dizer: “Não acreditem em nada que escrevo, acreditem em seus corações”. E ainda assim, também, não dizer nada. Mas escrevi essa história longa em homenagem aos cães do mundo. Eles merecem. E embora ela tenha muito a dizer sobre eles, pode-se perceber além das linhas, aqueles que são perspicazes, que essa história é mais sobre gente, do que sobre cães. Porque se se descem anjos dos céus pelos animais, imaginem o que há de descer pelos homens de bom coração...
Essas três histórias foram sobre uma vida. A minha. No fim, todas as histórias são uma só.