Desmatamento: Caim Precisa Parar de Matar Abel

Portel, 28 de abril de 2015.

Caríssimos,


Os primeiros meses do ano foram mais uma vez para mim momentos de leitura e aprendizado, poucas viagens físicas dando lugar às mentais. Dos livros que li, dois chamaram-me a atenção: O Diário de Anne Frank e Ismael, cada um na sua boa intenção e tema de instruir-nos para entendimento melhor sobre a humanidade. Com a frase “o papel tem mais paciência que a gente”, Anne me convenceu a escrever sempre que puder, pois onde a memória se perde na velocidade dos modismos e na dificuldade senil de lembrarmos, é necessário deixar registrado nossos pensamentos e disso aprendi com a jovem morta pelos nazistas na Holanda, cujo diário inspira milhões de pessoas para um mundo mais tolerante.


Do outro livro, Ismael, de Daniel Quinn, queria traçar uma reflexão de sua tratativa e relacioná-lo com a luta pela terra e pelos recursos naturais na Amazônia. Trabalhos de campo não faltam para ter um paralelo. A obra remete à análise da condição humana sobre a Terra, divididos em Pegadores e Largadores. O diálogo entre o professor, Ismael, e seu aluno resume a uma situação posta por nós mesmos nos últimos 4 mil anos de mentalizarmos sermos donos do planeta e da vida, decidindo no final das contas, quem deve morrer e quem deve viver entre as espécies. Para esta opinião é preciso entender quem são Pegadores e quem são Largadores.


Largadores seriam as pessoas que viveram ou vivem da natureza, entendendo ser parte dela, culturalmente integrados aos recursos naturais locais, onde valorizam a fauna, a flora e o que fornece a terra, sem ambições desmedidas de serem proprietárias da mesma. Sua passagem vem de milhões de anos e ainda hoje podem ser visualizados nos indígenas amazônicos, nos aborígenes da Oceania e nas tribos africanas. Em comum, a relação de equilíbrio entre homem x natureza. Estão em evolução e permitem a evolução das demais criaturas como um direito universal. O Professor Ismael acha-os parecidos com a figura bíblica de Abel, do pastoreio, da simplicidade. Até podem pegar, mas tendem mesmo é largar o que vivenciam na natureza sem maiores preocupações. São Largadores.


Já os Pegadores seriam aqueles que nos últimos 4 milênios tem desenvolvidos tecnologias, sistemas de uso da terra e cultura pautados no acúmulo inventados por eles mesmos como riquezas. Assim indicam o papel-moeda, o ouro e recentemente lastros virtuais como fontes de enriquecimento, observando de modo secundário os demais recursos afetados pela obtenção daquilo que julga prioritário para o status quo. Tendem a se apropriar dos territórios, entendendo serem os valores financeiros acima de outros valores, sobretudo no que diz respeito à biodiversidade, no equilíbrio entre os seres vivos e na cultura dos povos Largadores. Interferem decisivamente na evolução das outras espécies e ameaçam a própria existência humana pela negligência dos impactos ambientais que causam. Ismael vê o personagem Caim como um típico Pegador e como seus pares, pegam para si o que pode ser transformado em poder e seus derivados. Como assim Caim?


No esforço de agradar a Deus, Caim e Abel ofertavam seus produtos, o da agricultura e o do pastoreio e aí li uma interpretação no livro que nunca tinha pensado antes: por que Deus não gostava das oferendas de um e amava aquilo que outro trazia? Diz-se que Caim matou Abel por inveja, mas o que motivou a inveja? Onde Ismael queria chegar com a descrição de Pegadores e Largadores? Para o professor, Caim desejava ser dono da terra, ser dono da vida, enquanto seu irmão teria trazido seu pastoreio, mas podia ter trazido sua coleta. Não queria mudar a paisagem, apenas conviver com ela. Talvez quisesse Caim dominar a terra com sua agricultura, o que não agradou os céus. Assim, por inveja diante da predileção de Deus pelo equilíbrio e simplicidade e talvez algo mais, Caim Matou Abel. Assim os povos caucasianos vieram da Europa (agricultores) e expulsaram os semitas (nômades pastores). Também como os ibéricos (portugueses e espanhóis) vieram e subjulgaram os astecas, incas, tupinambás e os mapuás. Como os pioneiros norte-americanos ganharam as áreas tradicionais dos apaches e cheyennes. Como as fazendas dos anos 1970-1980 vieram e vem expulsando indígenas, quilombolas, extrativistas. Nesta guerra, desmatar é ser proprietário da terra, é decidir quem deve ficar e quem deve sair no meio do fogo, dos correntões. É o ato de ter posse da vida. “Meu Filho, tudo isto um dia será seu...”, aponta o fazendeiro para o filho pequeno que não entende direito como pode ele mandar até no horizonte. Em algum lugar remoto, um pajé fala à sua criança: “somos parte de tudo isto...”, também apontando para o nascer do sol. Diferentes visões sobre o que é viver.


Em Juruti, recentemente deparei-me com uma cruz fincada ao lado de uma estrada de terra, que apontava onde uma liderança local tinha sido alvejada e morta por gente envolvida com conflitos agrários e grilagem. Grilagem esta que simboliza o desejo de ser dono da terra e da vida, decidindo em seu percurso quem vive e quem morre. No Marajó, madeireiros tem se comportado há décadas como senhores das matas e das comunidades que nela vivem. Nos plantios de eucaliptos, áreas imensas foram desmatadas em nome do capital, em detrimento da biodiversidade e dos rios e igarapés locais. Nossa civilização é inexoravelmente de Pegadores.


Como impedir os efeitos destrutivos de nosso estilo de vida? Como proteger a Floresta Amazônica, símbolo desta resistência em nome da vida? Não tenho respostas, mas desconfio antes de tudo que Caim precisa parar de matar Abel...


Aos mestres, escrevi.


(Foto: Nilza MIranda)