MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

(ANTONIO COSTTA)

Deus me concedeu o privilégio de vir ao mundo numa segunda-feira ensolarada do dia 24 de abril de 1972. Fruto da união conjugal de meus pais Severino Honorato da Silva e Maria José da Costa Silva. Residentes no Sitio Chã de Areia, pertencente ao Município de Pilar, na Paraíba.

Fui o quinto de uma família de sete filhos, que pela ordem de nascimento receberam os seguintes nomes: Evaldo, Egilson, Elenilda, Evando, eu Antonio, Marcone e Valter. Observe que a seqüência dos E’s foi quebrada comigo. A minha irmã Elenida morreu com nove anos de idade vitima de um atropelamento quando retornando da escola.

Meus pais, mesmo dispondo de pouco recurso financeiro, souberam nos educar com dignidade para vivermos nesta terra como pessoas honradas e tementes a Deus.

Honra-me muito ser filho de agricultor, pois graças à convivência com o campo aprendi a amar e a respeitar as pessoas simples da roça.

Trago doces recordações do Sítio Chã de Areia, pois foi lá onde começou a minha história, que finalmente cheguei para este mundo de aventuras, sonhos e ilusões.

Em meu nascimento aconteceu um fato curioso protagonizado por minha avó paterna Dona Etelvina e a minha mãe Dona Maria José, com relação ao nome que deveriam colocar-me. Pois, minha avó, de saudosa memória, tinha combinado que quando chegasse a hora de eu nascer, mandasse avisá-la rapidamente, pois gostaria de assistir ao nascimento de seu novo neto que segundo a minha a minha mãe, deveria chamar-se Fernando e não Antonio como haveria de ser.

Porém minha mãe, mulher de forte personalidade, não querendo, talvez por pudor, de maneira alguma a presença constrangedora de sua sogra na hora do parto, não mandou nenhum mensageiro a sua casa para avisa-la que já tinha iniciado o doloroso processo de dá a luz seu novo rebento, e que a única parteira da região, Dona Josina, já estava a postos pronta para trazer à tona aquele que seria o quinto filho da sua família.

Porém o parto se complicou, as horas se passavam e eu não dava o ar de minha graça. Minha mãe angustiada gemia em meio às dores e as lágrimas. Meu pai, o Sr. Severino Honorato da Silva, popularmente conhecido como Biu de Nô, nervoso saiu de casa discretamente e foi chamar Dona Etelvina, sua velha mãe, para que com toda a sua experiência ajudasse de alguma forma no nascimento daquela criança. Minha mãe exausta, já não se importara com a chegada de sua sogra, pois não sabia mais o que fazer para dá a luz a aquele menino cujo nome deveria ser Fernando. Eu imagino que não estava gostando nadinha de ser chamado de Fernando, nada contra o nome Fernando, era porquê eu queria um nome que se identificasse melhor com os meus Gens, com os meus Cromossomos. Por isso estava impossível, dando aquele trabalhão para nascer e certamente argumentando em meio às águas turbulentas da placenta: com este nome eu não nasço!

Foi quando minha avó entrou no quarto e do auge de suas supertições, ela disse:

“Menino que demora a nascer

só uma esperança lhe resta

por o nome dele Antonio

que ele nasce de pressa!”.

O verso foi engraçado, mas eficiente. Minha mãe, sufocada pelas dores, não contou história e replicou:

“Se é pro menino nascer

e esse sofrimento acabar

então a partir de agora

Antonio vai se chamar”.

Não demorou muito e eu nasci branquinho como a lã e de olhinhos azuis como o céu. Chorando desesperadamente, pois minha recepção não foi como eu esperava; que negócio é esse de apanhar no primeiro minuto de vida?... Meu pai sorria aliviado pela chegada de mais um menino macho que, segundo os seus cálculos, serviria futuramente de mão de obra gratuita para ajudá-lo no roçado.

Minha avó, com a sensação de quem tinha realizado um grande beneficio para humanidade, também sorria. A parteira, após cortar e dá um nó no meu umbigo, colocou-me ao lado de minha mãe. Então me acalmei ao calor dos seus braços. Quando fui direcionado a um peito enorme onde fiz a minha primeira refeição fora do ventre. Finalmente satisfeito olhei sorrindo para a minha avó que se aproximara para ver com quem eu me parecia, e antes que ela me balbuciasse alguma coisa eu gostaria de dizê-la: valeu vovó! obrigado pela sugestão, pois eu gostei mesmo foi de ser chamado de Antonio.

Durante nossa infância, como não tínhamos condições de comprar brinquedos de loja, então fabricávamos os nossos próprios brinquedos, utilizando pedaços de tábua, lata de óleo de comida, chinelo velho e barbante. Tudo isto se tornava em matéria prima em nossas mãos para a fabricação de carros, caminhões e tratores. E quando não conseguíamos no lixo do quintal todo este material, bastava encontrar uma simples garrafa de água sanitária vazia, um pouco de terra para enche-la, um pedaço de barbante para puxa-la e... pronto! Estava feito nosso novo brinquedo, e logo começávamos a apostar corrida numa grande pista imaginária de Fórmula-1.

Uma das minhas especialidades era a fabricação de anzol com arame de caderno que eu amarrava em uma vara de memeleiro com linha de carretel tirada escondido da máquina de costura de minha mãe, para pescarmos piaba no açude de meu avô, Nô Diogo, que ficava em uma vazante do Sítio Chã de Areia.

A nossa infância foi uma aventura maravilhosa! Nunca me esquecerei da primeira vez que fui à feira do Pilar, acompanhado por meus irmãos Evando, Marcone e Valter, tendo como guia a irmã Solidade que morava em nosso sítio, casada com o irmão Júlio e que era como uma segunda mãe para a gente. E lá fomos naquela manhã de sábado, a pé, bem cedinho, rumo a tão sonhada feira do Pilar! Com os chinelos nas mãos, levando topadas caminho a fora, e cada qual com um desejo no coração; o meu era o de comprar uma balinheira para caçar passarinho na mata de Seu Edrísio.

Solidade foi a nossa guia naquela incursão pela terra do Figueiredo. Depois de quarenta minutos de caminhada estávamos chegando na Estação que fica na chegada da cidade. Onde lá, em pé na calçada de um galpão Rede Ferroviária, encontramos uma mulher pretinha, conhecida por Chibata Preta que cozinhava a sua refeição matinal, ali mesmo em uma lata velha, suposta sobre duas pedras, naquele fogo de lenha improvisado no chão da rua. Confesso que fiquei com medo. Foi ai que acelerei o passo.

Já estávamos pertinho, pois só restava agora dobrar na esquina do Silva, passar na ponte, e... finalmente a feira!!! A feira com todos os seus encantos! E ela era do jeito que eu imaginava, com muitos brinquedos pendurados nos bancos cobertos de lona, brinquedos expostos no chão da rua, brinquedos também nas lojas... Confesso que nunca vi tantos brinquedos juntos. Infelizmente minhas economias só davam para comprar mesmo minha balinheira.

Mas eu voltei feliz, com Solidade, com meus irmãos... Atirando pedras nos socós que mergulhavam do Riacho do Figueiredo.

Aos seis anos fui estudar, juntamente com meu irmão Evando, na escolinha de Dona Antônia Tonê que ficava em sua própria residência no sítio Figueiredo. Professora severa, afamada por ter ensinado a várias gerações, conhecida por fazer seus alunos aprenderem com rapidez e disciplina, à base da palmatória e dos castigos no canto da parede, de joelho sobre caroços de milho. Foi com ela que aprendi a escrever minhas primeiras palavras e a responder as questões da Tabuada.

Depois, no ano seguinte, fomos estudar com uma moça de nome “Maria José Dias”, conhecida por Pepeu, por quem quase me apaixonei! Pois ela pegava com muito carinho em minha mão na hora de ensinar-me a escrever corretamente.

Nossos pais não nos matricularam no Grupo Escolar de Chã de Areia, talvez por receio, por trauma, pois tinha perdido recentemente minha irmã Elenilda, atropelada por uma cômbi, quando ela retornava da escola, um grupo escolar que ficava próximo do rio da Una, com a sua professora Dona Antônia Tonê e seus colegas.

A nossa última professora do sítio foi Maria José Matos que nos ensinou do terceiro ao quarto ano primário.

E finalmente fomos estudar em Pilar, no Grupo Escolar Dr. José Maria localizado próximo a igreja matriz da cidade. Sentimos muita dificuldade para nos adaptarmos ao comportamento dos colegas da rua, às matérias novas, especialmente o inglês, e também a estudar com vários professores.

Quase não falávamos, só abríamos a boca na sala de aula para responder “presente”. Até que um dia resolvi mostrar o meu talento de desenhista, eu desenhava e meu irmão pintava. Então foi ai que tudo mudou e nos tornamos talvez os alunos mais populares da escola!

A sexta e a sétima série estudamos no Colégio de 1º e 2º graus José Lins do Rego. Onde tivemos excelentes professores como José Bonifácio, Teixeira, Dona Severina Batista, Valter, Dona Ana, entre outros...

Porém lá éramos chamados de matuto a toda hora por um colega de nome Cícero, que escondia nosso material escolar, causando-nos muito constrangimento. Até que um dia não suportei mais vê-lo chamar meu irmão de matuto então lhe ameacei dizendo: se você chamar meu irmão de matuto mais uma vez você vai ver uma coisa! Mas ele não quis saber e replicou: matuto, matuto, matuto!!! Então eu armei-lhe um soco e quando fui o almejá-lo, ele desviou-se da minha mira e me devolveu um direto de esquerda na testa que eu quase caia no chão, foi ai que eu falei: “pare, pare, pare! Que eu não quero brigar mais não!” E caí num pranto incontrolável, sentado na minha cadeira. Os alunos correram para avisar a professora. Os alunos das outras classes vieram correndo para saber o que acontecera Levaram-me à diretoria para colocar gelo sobre o calombo azul que nasceu na minha testa, aquilo parou o colégio. A diretora Dona Didi chamou seriamente a atenção do Cícero. Mas uma coisa boa aconteceu nisso tudo, foi que ele se intrigou conosco e nunca mais nos chamou de matuto! Alguns anos depois fizemos as pazes e nos tornamos grandes amigos.

No início do inverno a alegria tomava conta do Sítio Chã de Areia. Todo mundo se animava para o plantio. Meu pai preparava a semente de inhame para seu novo roçado. Os seus olhos brilhavam, era a esperança de um ano bom, diferente do ano de 1983 onde ele perdeu tudo com a seca. 84 seria diferente, um cheiro de prosperidade pairava no ar. Mês de Fevereiro e a terra já estava alagada!

Chovia o dia todo e perdurava pela noite. As cacimbas sangravam. As águas barrentas tomavam conta dos açudes, até o Rio Una roncava com a força da enchente!

Os homens, os passinhos, os sapos, as rãs, todos louvavam a Deus pela bênção recebida!

E contemplando aquele espetáculo da natureza, vendo a chuva forte cair e escorrer pelo terreiro, formando riozinhos e lagoas para a nossa diversão, então pedíamos a mamãe e a papai para tomarmos banho na chuva e quando a resposta era positiva a festa estava feita! Sim, era uma aventura maravilhosa brincarmos no terreiro encharcado, cheio de poças e de lama, onde escorregávamos de propósito... Que nos importava a queda? Estava chovendo de verdade e aquele era um momento especial em nossa vida!

E no final do banho era que vinha a melhor parte, íamos para debaixo de uma bica, sob uma correnteza de água cristalina, com o mesmo prazer de quem estava se banhando debaixo de uma cachoeira.

Aquele é que era tempo um bom... Infância... Cheiro de inocência no ar.

Medo gripe? -nem pensar!

“A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não”;

Então a gente brincava

Cantando este refrão!

A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não;

Pois quem tem medo de chuva

Não sabe desta emoção!

Somente a chuva fininha

É que gripa no sertão;

Os pingos da chuva grossa

Lava o corpo e o coração!”

Assim a gente brincava

Cantando este refrão;

“A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não!”

Mas nem tudo era somente festa quando o inverno chegava; também tínhamos que ajudar nossos pais no roçado, semeando semente de inhame, milho e feijão. E aquelas cestas cheias de semente de inhame como doíam em nossas mãos! Sem falar nas formigas pretas que mordiam nossos pés incessantemente.

Desde cedo descobri que não tinha vocação para a agricultura. Meu pai dizia que eu era doente de preguiça. Até meu avô pegava no meu pé!

“Menino vá buscar outra cesta de semente para esse canto do roçado!”

–Ai, ai, ai! Meu avô!... Que dor na minha canela!

Então eu caía no chão e meu avô dizia sorrindo...

-Esse menino não tem jeito, não... Tá ficando amarelo de preguiça!

Meu avô morreu aos 84 anos de idade. Seu nome era Francisco Honorato da Silva, mas era conhecido pelo apelido de Nô Diogo, casado com Dona Etelvina, nascido e criado na roça. Era um homem analfabeto, porém detentor de uma sabedoria incrível! Pois sabia como ninguém da vida bucólica. Conhecia o solo apropriado para cada semente, sabia a hora exata de plantar cada grão e de colher cada fruto. Era, sem dúvida alguma, um doutor da agricultura formado na fantástica universidade da vida. Era experimentado a ter fartura e escassez. E apesar de dispor de pouco recurso, de ser um simples sitiante, era honrado e respeitado em toda a região.

Porém a virtude de meu avô que eu mais admirava é que ele sabia contar estórias como ninguém. Sim, meu avô era um exímio contador de estórias. E nós, os seus netos, éramos a sua platéia preferida.

Toda noite íamos para o alpendre de sua casa ouvi-lo contar as aventuras de Camões e Pedro Malazarte. A noite ficava mais bonita, as estrelas brilhavam mais... As nuvens negras de dissipavam e a lua refletia sobre nós a sua envolvente luz de prata.

Naquela época não tínhamos televisão. A energia elétrica ainda não tinha chegado ao Sítio Chã de Areia. Então ficávamos, um amontoado de netos e filhos de moradores, sob o alpendre de sua casa, sentados no chão em sua volta, para ouvir atenciosamente mais um capítulo do seu vasto repertório de estórias, causos e adivinhações. E quando ele começava a falar ficávamos de olhos arregalados e de orelhas em pé, encantados com cada palavra que saia de sua boca. Era como se ele se transformasse num capitão de um grande navio e nós fossemos a sua tripulação. Viajávamos com ele por oceanos distantes... Éramos crianças ansiosas por aventuras que despertassem a nossa imaginação e alimentassem os nossos sonhos.

Meu avô era um homem de pequena estatura, mas quando começava a contar estórias era como se ele crescesse! Crescesse tanto que nos envolvia com os seus gestos e suas emoções... Chorávamos quando ele chorava; sorríamos quando ele sorria! Ainda hoje guardo fragmentos de estórias ouvidas da boca de meu avô. Foi ele que, mesmo sem saber, despertou em mim o gosto pela literatura.

Meu pai me falou que meu avô era pra ser um homem rico por tanto que trabalhara, e só não foi por causa de sua paixão pelo jogo, pois ele não resistia aos convites dos amigos que vinham lhe buscar de carro, em sua casa, para passar a noite nos cassinos da cidade Itabaiana. Meu avô até velhinho mandava um portador fazer aposta no Jogo do Bixo, na venda de Néco Paulo que ficava na Encruzilhada. Talvez sonhasse em conseguir no jogo o que não consegui trabalhando durante décadas na agricultura. Quem sabe pensando em dá uma vida melhor para os seus filhos como herança. Mas a verdade é que o jogo não compensa e tudo não passou de ilusão.

Sinto muita saudade de meu avô... Do seu olhar sereno, chapéu de palha na cabeça, calça arregaçada no meio da canela, pés descalços e uma peixeira pendurada no sinto.

“-Bênça a vô?”... “-Deus te abençoe, meu neto!”. Meu avô não era um homem religioso, porém era temente a Deus. Quando ele estava doente para morrer mandou me chamar, queria me ensinar uma frase, recomendando a sua alma a Deus, para eu dizer na hora em que ele estivesse partindo desta vida. Não me lembro da frase. Lembro-me apenas de várias pessoas, familiares, amigos, vizinhos, visitando-lhe na véspera de seu falecimento, cedo da noite, o candeeiro aceso na sala, ele sentado em uma rede e todos em sua volta, alguns sentados em tamboretes, outros em pé. Todos prestando bastante atenção no que ele dizia, e ele contando as suas estórias, nem parecia que estava enfermo, tão próximo da morte.

E naquela noite lá estava eu, garoto, contemplando aquela cena toda pela porta entreaberta da cozinha. Via meu avô sorrindo, contando os seus gracejos para os seus amigos que viera lhe fazer uma última visita!

Meu avô era um homem admirável. Se ele morresse naquele momento, sem dúvida alguma, morreria feliz! Pois partiria fazendo certamente o que ele mais gostava neste mundo, que era... “contar estórias”.

ANTONIO COSTTA
Enviado por ANTONIO COSTTA em 11/06/2007
Reeditado em 27/12/2018
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