Um passado que me segura.

Agarro-me às mãos de vovó Sadica ( Enedina Borges de Lima) temperadas no calor do fogão a lenha, forno de barro (para complementar a renda com suas quitandas maravilhosas), também de sua implacável palmatória.

Retorno à modéstia de seu (nosso) viver porque trazia colo morno onde aprendi com sua ríspida didática a ler aos 4 anos.

Em seu terreiro também aprendi inúmeras cantigas de roda e causos que me arrepiaram a tenra infância como estória da mula sem cabeça com estrela na testa!

Era professora primária.

Estudou na casa de um professor no triângulo mineiro, enquanto servia de babá às suas duas filhas: Mercedes de Minas e Genoveta Gerais. Jamais esqueceria estes nomes !

Dona Sadica era procurada por todos pais que tinham seus filhos expulsos dos grupos escolares por indisciplina.

Numa manhã, ainda remelenta, tropel de cavalo arisco na porta de casa assustou-me demais.

Ouvi quando seu Ariovaldo gritou: _ Dona Sadica, trouxe um traste pra sra. dar jeito!

Esfregando os olhos, vi quando sem pena pegou o moleque por um braço só e com um chute na bunda atirou-o no chão vociferando: _ Só a sra Dna. Sadica pra ensinar este maldito a ler, escrever, fazer contas e a obedecer.. Meta palmatória sem dó, o dinheiro vou trazer todo

mês!!!........ fiquei em estado de choque por dias, observando aquele moleque de calças curtas mas que já tinha tamanho para usar as compridas. Nunca mais vi aquele pai maldito!

O menino-grande de calças curtas foi se soltando durante os meses e o vi sorrir qdo. brincava de 'seu ratinho' e fazer caretas quando minha avó caprichava na força nas palmatoradas toda vez que errava verbos e tabuada. Suas mãos eram amareladas de calos. Pra eu não sofrer muito, pensava que não deveria doer muito aqueles abusos de força de minha avó, afinal, suas mãos eram grossas e as caretas poderiam ser de susto.

Vó Sadica tinha dom.

Sua casa era farturenta com pilhas de sacos de arroz em casca, feijão e café em grãos para o ano todo. Dividia sua fartura com minha mãe e seus 7 filhos e morávamos em uma de suas casinhas que construiu com dinheiro das quitandas. Sempre admirei-a. Adorava caminhar com ela, em silêncio, pelas beiras dos córregos e rios depois que fechava sua escolinha para buscarmos lambarís e traíras para o jantar.

Nunca consegui pescar. Sentia e sinto ainda dó dos animais e não consigo matá-los para comer, nasci com esse defeito, ninguém me ensinou. Então minha serventia era de catar bostas secas do gado e amontoar para fazer fumaça, assim os borrachudos não chegavam. Outra coisa que eu fazia e que me dava náuseas era cortar com o facãozinho, forquilhas onde enfiaria na boca dos peixes que ela me jogaria e a mesma sairia na guelra.....sempre fiz vômito neste momento, sempre.... Nunca comi seus peixes fritos vovó querida....sempre fiz de conta......

Mamãe deixava-nos aos seus cuidados enquanto ia dar aulas na escola particular São José. Chegava cansada, com fome e muito mal- humorada e o pior, odiava cheiro de peixes, de pequí e de jaca. Coitada de minha mamãe! Sempre sofreu de mau humor pois era o macho-fêmea da casa com seus 7 filhos; se não fosse nossa austera vovó, não sei o que teria sido!

Não posso deixar de contar que a melhor parte de minha infância era quando, depois das pescarias e do jantar servido para aquele tantão de crianças, vovó fazia cara de índia séria e vinha lá de dentro da oca, sem avental, meio sorriso nos lábios e perguntava:--- Quem quer pipoca DE doce?

Dali eu sabia que mais do que pipoca doce, sairia aquelas maravilhosas estórias e ficava em sobressalto..... receosa, pedia que repetisse pela undécima vez a Vida do Gigante e ela com aquiescente olhar contava e contava e contou tantas vezes e choro manso de saudades por minha Brava avó Sadica, por seu melado de rapadura delicioso misturado à pipoca, por seu jeito truculento dizendo assim sobre o final da vida do gigante: Dentro da pedra tem uma pomba, dentro da pomba tem um ovo, dentro do ovo tem uma chave e esta abrirá a porta do castelo do Gigante! Nunca saberei o que havia lá!!! nunca saberei!

Agarro em suas mãos minha vó Sadica, para me sustentar.

Mamãe partiu outro dia, não teve tempo nem para uma estória sequer..... Partiu com tanto sofrimento , tanta amargura e me deixou aqui desse jeito vó.... perdão querida! Fiquemos mais um pouco......

Lembra-se daquele presidente ditador que nos visitou em Itumbiara? Você me disse: É longe demais até aquele aeroporto empoeirado minha neta, chegará lá com as meias marrons e o lenço de abanar também. Larga disso venha me ajudar a passar calda nas roscas..... Teimei e fui. Nunca tinha visto um avião de perto e nenhum presidente de riso amarelo e olhos tão azuis.

Ele não me viu como não viu ninguém, mas o vi e nunca esqueci.

Rapidamente partiu!

O calor e a poeira expulsaram o tal presidente ditador , mas pude vê-lo.

Guardo um montão de memórias.

Devagarinho vou experimentando do lado de fora, o encontro do colo com a ternura.

Arana do cerrado
Enviado por Arana do cerrado em 29/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
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