Uma carta nos dias de hoje
Correspondências manuscritas não existem mais. Sabemos que há algum tempo as mensagens eletrônicas tomou conta das nossas relações. São e-mails, chats, mensagens SMS. Tudo veio para facilitar nossa comunicação. É mais rápido e mais prático. A distância e o tempo encurtados chega dar a impressão que o mundo diminuiu. Não dá mais vontade de sair gritando, como cantou Sílvio Brito: “Pare o mundo que eu quero descer”, porque aprendemos a amar esses recursos. E quando a internet trava, ou o equipamento dá pau, tentamos cantar o oposto: “Rode de novo o mundo que eu quero subir”. Por mais que usemos pouco, nos beneficiamos dessas e outras ferramentas tecnológicas. É difícil criticar. Não, não vou fazê-lo hoje. O motivo desta crônica é outro, mas sem me desligar, de todo, dessa introdução.
Certo dia, estando eu de folga, acordei por volta das oito, escovei os dentes, tomei café e sentei na varanda para fumar. Entre um e outro trago, ouvi alguém depositando algo na caixinha dos Correios, ali próximo. “Deve ser alguma conta de água ou luz, ou mesmo a fatura do mês”, pensei. “Pode ser também aqueles convites ‘tentadores’ para se ter um cartão de crédito”, continuei a matutar. “Depois vejo isso”, conclui.
O dia passou. Esqueci-me de olhar o que havia sido depositado na caixinha. No outro dia, antes de sair para o trabalho, por hábito verifiquei o que havia lá. Estranhamente havia uma carta manuscrita. Não estava envelopada. Estava dobrada e grampeada. Uma folha escrita dos dois lados. O destinatário não era pontual, não tinha meu nome nem de ninguém. “Para: qualquer um”. Se o destinatário era indefinido, o remetente também. Por estar na minha hora, enfiei a carta no bolso da calça e fui para o trabalho.
Lá chegando, não me lembrei de lê-la. Somente em casa, no outro dia pela manhã, me atinei a verificar mais precisamente o conteúdo da correspondência. Escrita de caneta azul em uma folha de caderno, a letra arredondada não dava mostras de nenhum erro gritante. Também não havia rasuras. Esses detalhes me chamaram muito a atenção no início da leitura.
A continuidade da leitura, devagar, atenciosa, procurando cada sentido incrustado nas palavras e frases. Li assim por achar interessante a iniciativa de quem a lavrou, tendo-o feito de forma manual, usando caneta e folha de caderno. Quanto ao seu conteúdo, não sei se posso lhe fazer coro por inteiro. A carta falava de pecado e arrependimento de forma muito convincente e fundamentada. Depois falava de retribuição, sobre “paraíso na terra”. Depois de eu ler uma, duas, três vezes, pus-me a pensar. Não sou ateu, porém também não frequento nenhuma igreja. Costumo dizer que minha igreja mora em mim. Pecados? Todos cometemos. Arrependimento? Importante se arrepender sempre. Recompensa por ser um bom homem? Eis a discordância, o ponto conflitivo do que trazia a carta e do penso sobre. Explico.
Somos educados e moralizados para recebermos recompensa. Se for assim, isso; e se for assado, aquilo. Na família, na escola, na igreja e na sociedade normalmente é assim. Sem querer questionar sobre a bíblia, pois não duvido de nada que lá esteja escrito, creio que esse conceito de bondade mediante recompensa é contraditório. Não diria leviano. Quer dizer, pregar a bondade é legítimo, é um bom caminho, deve ser a regra e não a exceção, mas fazendo-a apenas com a esperança de não ser penalizado, aproxima muito de egoísmo. Daí a contradição. Quando a bondade for incondicional, e sabemos que tantos e tantos a fazem assim, brilhará dela um sentido mais pleno, mais puro.
Nessa mesma linha, a carta falava em “vida eterna no paraíso que vai se instalar na terra”. Depois de comentar sobre a carta e seu conteúdo com uma pessoa, amplas razões de concordância foram dados por ela. Com uma outra pessoa, o mesmo. Eu fiquei sozinho com meus botões, pensando a respeito. Vida eterna? Há tempo pra tudo se acabar. Tudo que caminha há de parar. Tudo que começa, finda. Tudo que nasce, morre. Assim sendo, todos nós esperamos descansar um dia. Talvez o conceito de vida eterna, diante de tamanha esperança, esteja sendo também confundido ao se afirmar a extensão dessa vida em uma outra, como se levássemos a forma e a consciência daqui para lá, em perenidade.
E se pensarmos que vida eterna seja nossa memória? Simples assim. Não é absurdo levarmos em consideração essa possibilidade. Amanhecer o dia e trabalhar honestamente. Aconselhar as crianças e saber ouvir os mais velhos. Não causar dor e nenhum mal a ninguém e, quando possível, ajudar a amenizar o sofrimento alheio. Fazer a bondade sem esperar nada em troca. Quando acontecer o erro, que haja arrependimento, mas que esse seja para o aprendizado. E assim vai. Quem sabe a vida eterna, por assim pensar, esteja no histórico, no rastro biográfico, na memória de cada um de nós, quando batermos as botas.
A carta. E a carta, diante disso tudo? Bem que poderia tê-la guardado. Embora havendo tais discordâncias, respeito, sinceramente, tudo que lá estava escrito. Ainda não sei quem a escreveu e possivelmente nunca saiba. Certo é que gostei dela. Gostei das letras manuscritas, da caligrafia cuidadosa, do esmero das maiúsculas e minúsculas proporcionais, da ausência de rasuras ou correções. Gostei. Não devo dizer que não tenha gostado do conteúdo, e sim que penso um pouco diferente. Talvez seja mais uma questão de interpretação, de subjetividade.
E, para fechar, que bom que eu possa fazer um reparo no que eu disse na primeira frase desta crônica: “Correspondências manuscritas ainda existem”. E mais: “Como é bom recebê-las. Mesmo que as coisas presentes tentem deixar em nós essa sensação besta de anacronismo, receber uma carta escrita a caneta ainda é como receber um aperto de mão das palavras”.