Buarquizando a tristeza daquela segunda-feira

Aconteceu em um dia que tinha a nossa cara. Preguiçoso. Molhado. Bastante cinza, desconvidando a viver. Nossas pernas entrelaçadas, se confundindo, como sempre. E eu sem saber com quais sair. Qual porta fechar. Como fazer as malas, depois de meus sapatos passarem tanto tempo pisando os teus que já não sabiam o caminho de volta. O tempo escorria manso e a chuva castigava a cidade inteira. Menos a nós. Que só queríamos que ela não passasse, que o tempo congelasse, que aquele fim anunciado não se concretizasse. Nunca mais. Como dizer 'nunca mais'? Se nessa bagunça caótica que é o meu coração, seu sangue já não sabe por qual veia ir embora. Se o meu sangue se perdeu completamente e nem o GPS encontra a rota certa pra sair daqui. Desse quarto. Dessa vida. Dessas lembranças. Das nossas coisinhas. Dos nossos detalhes tão carinhosos. Do calor do seu pé. Do cheiro da sua orelha.

Aconteceu que, como acontece em tantos filmes, o amor ficou insuficiente. Não que ele fosse pouco ou pequeno. Pelo contrário, ele ocupa mais células e dá mais energia que oxigênio. Ele cresce todos os dias. E continua crescendo, agora, no próximo segundo, amanhã, mês que vem. Em progressão geométrica. Assustadoramente. Daí que ele não tem braços suficientes pra segurar todo o resto. A magia do abraço no fogão, do beijinho dado à toa no meio do corredor, da ligação no meio da manhã pra falar de saudade, do atar das mãos ao cair das luzes, não suplanta mais a necessidade da separação. De liberdade, de crescimento, de ajustar os ponteiros, de reciclar a energia, de dar um passo adiante, de viver, de se renovar.

Aconteceu que eu fui embora. Não houve briga, arranhão, acusações, dedos apontados, feridas remexidas. Só o descruzar do abraço. O desatar das línguas. O desembolar dos cabelos. O desfazer da fotografia rotineira de família reunida em torno do ócio. Perdemos a noção da hora como de costume, mas os segundos iam pingando na ampulheta, e os passos se afastavam, os caminhos se desuniam, os corpos esfriavam e os corações se despediam. Deixei a bolha pra trás e fui tomar banho. Pareceu só mais um. Arrumei a mochila como se fosse voltar no fim de semana que vem. Catei minhas coisas como se fosse só pra trazer outras. Na vida real não se diz adeus, né? A gente diz "se cuida", querendo dizer "me pede mais uma vez pra ficar... me pede, que não vou mais resistir, não vou mais lutar contra essa vontade de não sair daqui nunca mais." Mas a gente só diz 'se cuida' mesmo. E procura uma cara pra sair, com os seios dela ainda nas nossas mãos. E o coração também. E todo o resto. Daí você sai. Beija o cachorro, dá um tchau casual ao pessoal da casa, como parte da rotina. Daquela rotina que você tanto ama mas tá deixando pra trás. E a cada segundo você se pergunta se é isso mesmo. Você espera sentir aquela certeza. Mas ela nunca vem. Você chora até não ter mais forças, até seus olhos arderem pedindo menos, até seu corpo implorar pra que você se entregue. Daí você dorme. Acorda. Funciona. Segue. Esperando pelo dia em que a ficha vai cair. Em que a certeza vai chegar. A tranquilidade de ter feito a coisa certa.

Será?

Não, acho que estás te fazendo de tonta. Te dei meus olhos pra tomares conta. Agora conta: como hei de partir?*

*Com toda licença do mestre:

https://www.youtube.com/watch?v=cHptK8k8VkQ