A cidade e o cidadão
Vi um velho na esquina, passei direto, segui apressadamente pela calçada como sempre fazia. Eram seis da manhã, uma chuva fina caia sobre os que madrugavam, dos cafés exalavam o cheiro característico da bebida. Os dias nasciam sedentos de xícaras fumegantes de cafeina. Passei pela porta entreaberta enquanto uma cliente, de olhos ainda adormecidos, deixava o estabelecimento. Sentei-me à mesa, tirei meu chapéu, coloquei meus óculos, acendi um charuto, passei a mão direita sobre minha barba- por pura mania- e comecei a ler o jornal como de costume. Em algum momento a garçonete viria. Eu sempre sentia a sua presença antes que me perguntasse qual era o meu pedido. Seus tênis brancos se aproximavam da mesa, eu poderia jurar que já deveriam estar aposentados, eram de uma brancura amarelada e um deles ameaçava abrir um sorriso de tão desgastado. Eu erguia os olhos sobre os óculos. Olhava aquela face marcada por linhas de expressão e contornada por cabelos oxigenados e pedia uma xícara de café e a famosa rosquinha americana. Os tênis saíam apressadamente e da mesma forma voltavam. Meu pedido era meio que delicadamente despejado sobre a mesa, já manchada pela repetição de atendimentos feitos antes da minha chegada. Gostava de sentir o cheiro que vinha da xícara fumegante enquanto eu corria os olhos nas manchetes. O sangue vendia mais jornais, pelo menos disso qualquer um entendia. Então, era possível que ao se torcer aquelas páginas uma poça de sangue se formasse no chão. Não era preciso ser uma celebridade para causar comoção ou figurar no noticiário policial. Era necessário se chamar qualquer coisa e ter sofrido uma impactante violência. Algo que mostrasse a cara dos grandes centros urbanos, como se a violência fosse parceira do desenvolvimento, como se ela crescesse naturalmente com a população , as edificações e as atividades que faziam a vida da cidade. Gente morta era parte do cenário, morta de maneira trágica e violenta. No interior casos assim eram isolados, como se um ou outro fosse coisa fugida da cidade. A notícia em destaque era a agressão a um homossexual que caminhava rumo ao escritório no dia anterior. Havia sido morto por desconhecidos, testemunhas disseram isso a polícia. Ainda afirmaram que os agressores riram ao dizer que gente assim não deve viver. Gente assim? Paro a leitura e não consigo entender se há diferença entre gente que justifique agressões e preconceitos. Eu sinto raiva e chego a desejar a morte do agressor. Acho que milhares de leitores sentem a mesma coisa quando leem esse tipo de notícia. Mas, infelizmente, a ideia de justiça abandona o leitor quando ele fecha o jornal, ele guarda seu discurso de defesa e de indignação e segue sua rotina. No dia seguinte, haverá outro jornal, outra manchete, outras vítimas e como eu disse, não importa se é um Zé, uma Maria, um Silva, é preciso apenas ter sido vítima de uma barbárie. Novamente despertará o desejo de justiça no leitor, que concordará que a cidade é muito cruel e violenta, que ela alimenta, é claro, mas mata também. Novamente a ideia de justiça adormece nos minutos seguintes e lá vai o cidadão cumprir seus deveres. Sou um deles, levanto da mesa, dobro o jornal, pago pelo café, abro a porta do estabelecimento, saio, caminho de volta pela calçada e antes de dobrar a esquina, vejo novamente o velho. O sinal está fechado para pedestres, então não tendo outra opção senão esperar, observo-o.
Tem a mesma estatura que eu, a mesma cor de pele, morena desbotada, tem uma barba espessa como a minha, porém grisalha. Ele me observa também, silenciosamente fixa seu olhar em mim. São olhos negros como os meus, conformados como os meus, cansados como os meus. Olhos que se acostumaram com cenas e cenários, olhos passivos, olhos distanciados, olhos expectadores, olhos urbanizados. Curiosamente percebo que os óculos em sua face enrugada são os meus.