Coisas da minha vida

Um vento sul soprava forte. Uma chuva fina caia.Não havia ninguém na rua .

Passava da meia noite e “alemão” tirava seu serviço de sábado. Gostava do que fazia.

Vestia um colete pequeno para o seu tamanho que lhe dava um jeito e andar engraçado.

Usava uma lanterna amarrada na cintura estrategicamente colocada para parecer um revolver de cano longo e um cassetete tão grande que de vez em quando batia no chão.

Alemão, falava inglês, francês, espanhol, quanto ao português arrastava nos “ão” substituindo por on”.Só não falava nada de alemão, porque realmente seu apelido nada tinha ver com sua origem .Era italiano do interior ,comedor de polenta com “ raditch “ de segunda a domingo.

Para o Alemão, qualquer um que transitase pela rua após a meia noite era um “suspeito”em potencial.

Apitava de meia em meia hora, para que os síndicos dos prédios soubessem que ele ali estava pra garantir o sono dos justos (e injustos também).

Na apitada das duas e trinta, alemão notou um carro estranho passar. Arregalou os olhos,contou os ocupantes e ficou alerta.

O carro foi até o final da rua e retornou devagar. Alemão retirou o cassetete da cintura e segurou-o com as duas mãos.O carro parou a um distancia de uma quadra dele,e ele pode observar que os quatro ocupantes desceram e se dirigiram a uma casa .

Em seguida Alemão escuta vozes e um grito.

Ele sai correndo em direção contrária e liga para a polícia do seu celular.

-Alô Polícia! Tem "ladron" aqui na rua.

-Quem está falando?

-É o "alemom".

Todos conheciam o alemão e foi desnecessário maior identificação.

Alemão não esperou a polícia chegar, foi em direção a casa em que os quatro “suspeitos” haviam entrado, arrebentou a porta e distribuiu cacetada a vontade.

Nem ouvia o dono da casa gritando que todos eram amigos.

Na delegacia que alemão se acalmou e viu a mancada que dera. Eram quatro amigos fazendo uma surpresa para um amigo em comum pelo seu aniversário.

Na sua vida de guarda-noturno muitos casos aconteceram.

Um dia um morador perdeu as chaves e chamou um profissional para abrir a porta de entrada.

O chaveiro trabalhava na fechadura enquanto o proprietário aguardava sentado no carro em frente à residência.

alemão não perdeu tempo quando viu o chaveiro.

-Fique aí mesmo doutor que eu vou dar um jeito neste malandro.

Nem deu tempo para o proprietário explicar, alemão deu duas cacetadas na cabeça do chaveiro que o mandou para o hospital.

Ele pensou que o proprietário tinha sido coagido a ficar no carro (foi a explicação que ele deu ao delegado).

Na verdade é que quando alemão ficava nervoso ele não escutava e nem via nada.

-“parece que vejo umas sombras, e para garantir distribuo porrada mesmo”.

A pior dele foi quando ele ouviu um casal discutindo num prédio, subiu correndo cinco andares e tocou os pés na porta colocando-a embaixo, ato seguinte deu uma bordoada no marido brigão.

Segundo ele, esta foi a maior ingratidão que já fizeram.

A própria mulher que deu queixa contra ele, mas ele conseguiu se safar porque o delegado viu os olhos roxos da mulher.

Mesmo assim Alemão tinha a fama de ser o melhor vigia, mesmo com algumas mancadas. Já trabalhava na nossa rua a mais de dez anos.

Agora o pessoal da delegacia quando solicitado por ele, gritam:- “fica aí mesmo alemão, espera a gente chegar”.

Minha admiração por ele começou no dia 31 de Dezembro. Ele estava de serviço.Na passagem de ano estaria sozinho.Os foguetes estouravam sobre os prédios, o pessoal se preparava para a comemoração.Peguei uma cerveja e um pratinho de frios e fui a procura do Alemão

.Ele estava sentado num canto de um prédio com a cabeça baixa.

-E aí alemão tudo bem?

-O seu Kia ,tudo "pom".

-Olha aí amigo, trouxe uma cervejinha pra você e uns petiscos.

-"Nom" precisava seu Kia, hoje tenho galinha assada.com farofa. e um “gasosom”

Quando ele levantou os olhos, vi que estava chorando.

Aquele homem com quase dois metros de altura com os olhos marejados de lágrimas me comoveu .

Alemão sumiu, outro veio substituí-lo.

Ontem soube por um vizinho que alemão estava muito doente, me disse que ultimamente alemão sofria de diabetes e que havia perdido uma perna e uma complicação o levou a morte.

Lembrei-me então do dia que o vi chorar e o motivo que ele me disse da sua tristeza.

-“Sabe por que eu estou triste seu Kia?”.

-Não, me conta amigo.

-”é que vejo tanta gente feliz, com tantas coisas “poas” para comer, e tanta gente que “nom” tem nem um “ponzinho”.

Lembro-me que voltei para casa com os olhos vermelhos.

(Obrigado, por dividir minhas lembranças)