À MEIA SOLA ...A FIAR PELA VIDA

Em homenagem.

Ali, nos arredores simples duma comunidade pertencente a uma zona bem urbanizada de Sampa, faz muito tempo que ele mantém, às duras penas, o que chamo de "auto -empresa", a denominação que dou aos pequenos empreendedores heróis de si mesmo.

Sou, talvez, uma das suas clientes mais assíduas, primeiramente porque prezo a qualidade do seu ofício e as suas presteza e pontualidade profissionais tanto quanto sou aficionada por sapatos.

Sim, ele é o meu respeitável sapateiro, já há muito anos.

Meu e duma infinidade de pessoas que ainda prezam recuperar o que é bom e portanto fazem fila de espera ali na sua oficina, por também nele identificarem as suas qualidades no atendimento e na arte de recuperar o que nos parece irrecuperável.

Faz tempo que eu queria escrever sobre ele , e desta feita, hoje ouvindo de Glória Perez a sua poética e precisa definição de que "escritor já nasce pronto porque tem os olhos voltados para a dramaturgia da vida", então, eu resolvi colocar nas letras o meu olhar sobre ele e , de certa forma, da dramaturgia algo oculta que visualizei ao derredor do seu ofício, mais pontualmente a que muito me comoveu num certo dia em que eu ali estava para pagar e receber o meu sapato velho perfeitamente recondicionado.

Antes quero descrevê-lo: Ele é um homem de poucas palavras, de parcas letras, algo tímido, meia idade como eu, mas de um olhar imensamente acolhedor e comunicador.

Sei que é um homem de fé.

Nunca me disse, mas não foi difícil entender da sua crença porque no bloco de tijolo a vista, ali da parede aonde encosta suas máquinas, por onde o vento frio entra pela fresta do tijolo cortando os ossos, em meio à exposição da agarmassa solta e envelhecida, dentre o cenário que tudo descreve da simplicidade do seu recinto de luta diária; bem ali, inerte e há tempos, se mantém uma inscrição duma oração dependurada num quadrinho antigo, datilografado e sem moldura, daquela oração que Cristo nos ensinou, e claro, ali não poderia deixar de ser o melhor lugar para se pedir à vontade do Pai pela graça do sagrado pão nosso de cada dia, trabalhado no suor das mãos que labutam aqui na Terra a esperança dum pedacinho do merecido céu dum reino que há de vir.

Sei que não é muito fácil ler olhares humanos, sou algo treinada nisso por força do ofício, mas certo é que, para quem se reflete no espelho do outro, há de se certificar de que a alma realmente escolhe os olhos para imprimir e gritar seu estado de ânimo.

Sempre que chego ali eu logo encosto no balcão da sapataria a reler a oração juntamente à leitura do seu contrato de serviço prestado e firmado pela palavra grafada e pregada na mesma parede descrita; e logo mais abaixo numa prateleira de madeira fico a olhar as mercadorias em exposição para venda, produtos curiosos e algo históricos, alguns de gosto extravagante, objetos que contam história, todos já recuperados pelo seu trabalho mas cujos clientes não foram retirá-los depois de muito tempo de contrato quebrado, e claro, seria impossível e imperdoável aos pecados não sentir um certo mal estar por alguns descasos dos esquecimentos que desvitalizam qualquer propósito de sobrevivência digna.

Mas ele, herói incessante de si mesmo, sempre se aproxima para examinar com a alma do ofício o que pode ser recuperado pelo tempo dos caminhos " meio-solados" trazidos pelas minhas mãos .

"Esse é meu xodó" sempre digo a ele explicando o que preciso, e acredito que ele, dentre o sorriso que sempre me esboça, se pergunta como posso ter tantos xodós...se só tenho dois pés.

Coma a honesta agilidade dum especialista logo diagnostica:

"esse vale consertar, couro bom!"

O que me assusta ali é a incrível discrepância entre o grande serviço artesanal agregado e o pequeno valor cobrado por ele, e sou incisiva em escrever que tal me incomoda em demasia e não é o que em leva até ali, de modo que sempre entrego uma nota maior que o preço para não pegar troco algum de volta.

Mas naquele dia em especial eu lhe levei o exato dinheiro trocado quando um senhor cliente, depois de parar seu carrão zero em frente à sapataria, entrou, e enquanto eu lhe pagava pelo serviço o senhor me fez o seguinte discurso:

"ô dona, esse sapateiro é dos bão mesmo, mas nunca tem troco. Vim aqui pegar o meu sapato de pelica de vaqueiro que comprei lá no estrangeiro e que precisava trocar a meia sola. E já truxe mais esse pra fazer o mesmo serviço. Colocar meia sola das boas só esse home mesmo! Ninguém nesses tempos moderno reforma mais sapatos, tudo descartável hoje em dia, mas sapateiro dos bão é só pras boas solas do couro bão de só antigamente".

Até ali concordei plenamente com o discurso dele.

Todavia, na hora de retirar e pagar o parco preço do serviço já feito o cliente lhe argumentou assim:

"O Zé, tô sem troco também, nunca tenho trocado, que nem ocê Zé, só trabalho com cartão e ocê é teimoso homê, não quer saber da máquina do crédito no seu negócio. Os tempo são outro home! Então faz mais esse aqui pra mim, meia sola mas das boas, eu já levo o que está pronto e depois eu lhe pago pelos dois serviços, só atraso porque a curpa é sua."

Registro aqui que olhar do Zé sapateiro mais uma vez superou a dificuldade de comunicação da sua fala embargada e algo envergonhada de decepção para poder explicar.."é que, sabe senhor...é que eu, eu...eu não posso mais entregar o serviço pronto a fiado, olha a minha prateleira, tá cheia de prejuízo...".

Todavia, no cumprimento profissional exímio, observei que o sapateiro anotou o outro pedido da meia sola a ser feito, entregou a nota ao cliente e colocou a sua esperança pronta e recuperada de volta à vitrine da sorte, total refém da desconsideração mundana para com o suado "pão nosso" alheio, o do dia- a- dia.

Decerto que a oração do Pai ali também se selava pelo pedido de perdão aos tantos males nossos de cada dia.

Saí dali em silêncio perplexa com a construção das injustiças sociais...pelo livre arbítrio das nossas próprias mãos.

E certa de que discursos em prol do outro são sempre muito vazios...