Não consigo usar lentes

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Desde cedo, muito cedo mesmo, meus pais perceberam minha dificuldade em abrir o olho esquerdo na “presença” do sol. Quando ainda nenenzinho de berço, durante os adoráveis banhos de sol que eu fazia na companhia da mamãe, as amigas mais chegadas interrogavam-na sobre isso:

– Leve-o ao oculista – diziam todas num harmonioso apelo uníssono.

– Coitadinho! Deve ser horrível ficar o tempo todo com o olhinho esquerdo fechado, não é bebê!? – interpelava uma outra enquanto puxava minhas bochechas. Não sei se o que sentia, à época, era raiva, mas certamente chorava muito quando faziam isso. Que mania têm as mulheres de se acharem donas dos corpinhos e das bochechas das crianças! Será que nunca atinaram sobre a possibilidade real de dor que esses carinhos provocam!?...

Aos dois anos, aproximadamente, fui levado ao meu primeiro exame óptico e conheci meu primeiro oftalmologista. O cidadão médico falou para os meus pais que eu era míope e que também sofria de astigmatismo. Não me deterei aos termos peculiares da profissão branca, mas devo ter adorado as palavras bonitas do senhor cidadão doutor: astigmatismo. Não é uma lindíssima palavra? A partir de então comecei minha árdua caminhada de portador de óculos!

Criancinha ingênua e pura – dentro das limitações humanas – não ligava para o novo artefato que ornamentava minha face, ignorava mesmo! Só não gostava de ficar o tempo todo levantando o desgramado dos óculos que insistiam em escorregar pelo nariz... Que raiva!

Três anos, quatro anos, cinco anos... À medida que a natureza agia em mim, as brincadeirinhas e as piadinhas também cresciam:

Era alvo de alcunhas que me chateavam à beça: “Ei, ceguinho!” – Esse era o apelido mais chato que me davam. Não suportava ouvir essas palavras... “Quatro olho!” Diziam outros. Uma vez briguei por causa desse tal de quatro olho... O garoto se deu mal por causa disso. “Perdoe. Não tenho esmolas, ceguinho...”

Veio a adolescência e os lampejos de menino-homem mostraram sua cara. Os complexos surgiram, estavam à flor da pele.

Tecnologia: que maravilha! Vivíamos a febre das lentes de contato que invadiam o mercado brasileiro. Por todos os lados, víamos falsas loiras, com seus falsos olhos azuis... Impressionavam mesmo! Para os íntimos, eram mulheres vulneráveis, fúteis – que preconceito tolo; para os desconhecidos, pedaços de mulher, “meio mundo de bom”, como dizem os interioranos.

Não podia ficar alheio. Fui, então, agora sozinho, ao oculista. Já era o quarto ou quinto desde o meu primeiro contato com a bengala visual. Uma jovem muito bonita – de olhos azuis – veio atender-me:

– O que o senhor deseja?

Adorei ter sido chamado de senhor. Senti-me importante... Senhor... Legal... Gostei.

– Experimentar algumas lentes. Respondi, por fim, todo cheio. Gostaria de usar lentes e me falaram que temos que passar por um período de adaptação.

No primeiro dia, consegui, com dificuldades, colocar a lente do olho direito. No segundo dia também. A do olho esquerdo, porém, não dava certo de jeito nenhum. Por mais que a moça tentasse posicioná-la, nada – a lente não “entrava”. No quinto dia, desisti.

A bela jovem de olhos azuis tentou de todos os jeitos convencer-me do contrário. Fui levado à médica que me explicou que o meu tipo de problema exigia lentes siliconadas, pois eram menores. Hoje nem sei se ainda existem. Explicou-me, muito calmamente, que as lentes gelatinosas não eram aconselháveis para o meu caso, apesar de uma adaptação mais fácil. Não houve jeito.

De óculos novos, lá ia eu para novas piadinhas e torturas psicológicas. Creio ter superado tudo: as reações instintivas das gozações que sofria, os complexos que me afligiam quando da necessidade de relacionar-me com outras pessoas. Não sei se estou de todo curado, mas melhorei muito. Até casei!

Agora, já homem feito, tive necessidade de uma nova consulta. O doutor, como todos os anteriores, limitou-se ao tradicional:

– Sente aqui. Agora diga as letras. É melhor assim ou assim?

– O primeiro.

– Assim ou assim?

– O segundo.

– Enxerga melhor no verde ou no vermelho?

– No vermelho.

– E agora? É melhor assim ou assim?

– O primeiro.

Pega o receituário. Tentei ler o que escrevia, mas minha miopia e a caligrafia caricata dos punhos hipocráticos não me permitiram ler nada. Por que os oftalmologistas não gravam uma fita com as perguntas básicas? Talvez fosse mais legal!... “Melhor assim ou assim?...” “O primeiro ou o segundo?...” Deve ser horrível pra eles fazerem sempre as mesmas perguntas! Com dez anos de profissão, fazendo sempre as mesmas perguntas... Sei não! Deve ser um tédio isso! Sai a sentença:

– Você usará lentes fotocromáticas. Outro nome bonito.

– Doutor, posso fazer uma pergunta?

– Sim.

– Eu uso óculos desde os dois anos e nunca consegui enxergar direito com o olho esquerdo, mesmo usando óculos. Isso é normal? O senhor pode olhar isso ou eu tenho que pagar por outra consulta?

– Não. Faz parte do exame. Vamos olhar. Sente na cadeira novamente. Olhe para frente. Olhe para a luz – ele se aproxima de mim com um aparelhinho que emite uma luz.

Examina o outro olho.

– Olhe para frente. Agora olhe para a luz.

Fico confuso. Meu Deus! Que exame louco! Penso. Essa luz batendo diretamente nos meus olhos. Será que ele esqueceu que sofro de astigmatismo? Esse médico é doido! Já estava quase levantando da cadeira para sair correndo quando, por fim, sai a outra sentença:

– É. Você tem um desvio no olho esquerdo. Você tem apenas oitenta e cinco por cento da visão com ele. Se tivesse operado até os seis ou sete anos, talvez tivesse corrigido.

– Eu uso óculos desde os dois anos, doutor.

– Se tivesse falado antes talvez alguém tivesse percebido.

– Ah, eu é que devia ter falado. O erro foi meu que não pedi uma luzinha antes. Então eu, criancinha, aos dois anos, com um problema que tem cirurgia corretiva até os sete anos já deveria ter dito ao médico que não enxergava bem, porque havia um desvio no olho esquerdo...

– Mas está estável. Não evoluirá mais, aparentemente.

– Entendo. E por que eu não consigo usar lentes, doutor? Nunca me adaptei. Tentei algumas vezes, mas a do olho esquerdo não “entra”.

– Isto é raro, mas acontece. Algumas pessoas têm bastante sensibilidade e não se adaptam.

– Sei.

Quem sabe, daqui a alguns anos uma nova luzinha me possibilite realizar esse sonho.

Fortaleza – Ce, 11 de março de 1999.

Esta crônica faz parte do livro “Crônicas e mais um conto”, que pode ser adquirido nas Livrarias Ao Livro Técnico do North Shopping e do Centro Cultural Dragão do Mar ou com o próprio autor, através de solicitação via e-mail: nijair@uol.com.br

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