A pinta e sua circunstância
Quem terá sido o cínico que apelidou de “pintas de beleza” aquelas manchas que temos na pele? Certamente alguém que não tinha nenhuma. O fato é que a história colou e muitas pessoas passaram a achar que é “um charme” ter uma pintinha no rosto (sobretudo se for uma pintinha mesmo, pequeninha). A coisa chegou a tal ponto que quem não tem pinta passou a falsificar a sua – aí está a Marylin Monroe que, se ainda estivesse viva, não me deixaria mentir.
Existem, é claro, pintas legítimas que fizeram certo sucesso, como aquela que a Angélica tem na perna, ou a que o Eri Johnson tem na cara – pessoalmente, prefiro a da Angélica. Sem falar naquela pinta da Sabrina Sato, bem no meio da testa. Não creio que a Sabrina Sato precisasse dela para ser considerada bonita, e também não me parece que seja a parte do seu corpo mais cobiçada pelo público masculino. Tirai a pinta da Sabrina Sato, colocai em uma pessoa normal e vede o que é feito do seu charme. Não vereis mais uma pessoa, mas unicamente a sua pinta.
A pinta precede a essência, diria Sartre. Falo no assunto com algum conhecimento de causa, afinal, no último recenseamento que fiz, encontrei 170 pintas de beleza espalhadas pelo meu corpo. É pinta que não acaba mais, do couro cabeludo à planta do pé. Se elas tivessem mesmo algum potencial estético, dificilmente se poderia pensar em uma pessoa mais bonita do que eu. E, no entanto, quer me parecer que ainda estou um pouco aquém da Sabrina Sato.
Chamo de “pinta”, mas os dermatologistas chamam de “nevo” (não confundir com “nervo”, pois só de fibras nervosas eu tenho, modéstia à parte, mais de três bilhões pelo corpo). São também os dermatologistas que me obrigam a tomar banhos diários de protetor solar. A pinta, afinal, nunca é apenas uma pinta – é ela e sua circunstância. Se tomar sol demais, uma pinta, embora de beleza, pode tirar a sua vida. Bob Marley, não sei se sabiam, morreu de uma pinta.
Tenho, pois, a exemplo dos vampiros, evitado a luz solar. Não é uma coisa fácil, sobretudo para quem mora em Brasília, mas tenho me saído tão bem que em questão de meses me tornei um deficiente em vitamina D – a vitamina que vem do sol. Ora, esta é uma péssima época para ser deficiente em vitamina D, pois a cada dia descobrem uma nova função curativa para ela, e eu não me espantaria se dissessem que ela auxilia no combate à corrupção. Antes uma vida sem oxigênio do que uma sem vitamina D – assim me pareceu ao falar com meu endocrinologista.
Ora, a minha vontade é juntar a minha dermatologista e o meu endocrinologista, trancar os dois em uma sala e só deixar que saiam depois de resolverem como eu devo me comportar em relação ao sol. O que não posso é tomar sol e ao mesmo tempo não tomar sol. Por enquanto tenho resolvido o problema tomando sol em gotas, que é como eu chamo carinhosamente aqueles suplementos de vitamina D. Não deixa bronzeado, mas também não queima a pele.
No mais, estou sempre na torcida pelos dias nublados, porque aí, se eu não tomo sol, também não é por minha culpa. E ainda aguardo, pacientemente, pela mulher que fará com que todo esse charme espalhado pelo meu corpo faça algum sentido.