Atrás do muro

O muro aqui de casa, que dá para o terreno baldio vizinho, é alto, pra lá de três metros. Mas mesmo assim, um muro é só um detalhe, quando o motivo para subi-lo é bom. Do meu quintal, o barulho do roçado que vinha dele me chamou a atenção, deu o motivo. Há muito tempo o mato alto tomou conta daquela área, cujo dono, por avareza ou descaso com o esforço alheio, nunca arrumou alguém disposto a carpir tudo aquilo pelo pouco que ele se dispunha a pagar. Lá fui eu, com a minha escada, procurar saber um pouco mais sobre o herói que assumiu essa empreitada. Do lado de lá, encontrei um senhor com a minha idade, 62 anos, de nome Aparecido “a seu dispor”- ele me disse. Um velho como eu, mas castigado pelo tempo e os maus tratos. “O senhor está tendo um trabalhão aí nesse matagal”, eu lhe disse. “Amanhã eu volto e termino tudo, difícil acabar num dia só”, ele respondeu. Ofereci uma água gelada ... “não senhor, obrigado, meu corpo está muito quente, é perigoso”. Sugeri um café fresco ... “eu já tomei de manhã e é assim que eu faço sempre, só tomo de manhã”. Depois de confirmar a volta do Seu Aparecido ao terreno no dia seguinte, lhe convidei para almoçar. Disse que minha mulher estava viajando e havia deixado lasanha pronta, prato fino, feito no capricho. Ele agradeceu e aceitou, dizendo que já que era assim, não ia trazer marmita. No final da tarde, trocou a roupa rota, velha e suada por outra só rota e velha, mas não suada, pegou uma bicicleta enferrujada e se foi, mas não sem antes desejar uma boa noite a mim e toda minha família. Amanhã terei o prazer de ver de novo o Seu Aparecido e lhe servir o almoço. Até lá, como bem me conheço, vou ficar pensando sobre essa gostosa mania que tenho de me envolver com gente simples e boa, coisa que muro alto algum vai conseguir evitar.

GripenNG
Enviado por GripenNG em 21/04/2015
Reeditado em 21/05/2020
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