Decifra-me ou te devoro
Ei, fera feroz! Deixe -me pegá -la emprestada! A febre irremediável dos olhos loucos, dos leitores curiosos depende de vós. Basta que não se mova. Basta que encare -me tão somente como faz agora esses teus diamantes negros. Furiosos olhos. Essa garganta que sangra a raiva do mundo, enxerga sob a capa rispida, com insaciável vontade de gritar. Grite, se necessário. Não há mais hoje grito qualquer que surpreenda esses homens. O mundo acostumara - se a ser constante atividade... uma falta de silêncio. Sua maldade não mais os intimida. No entanto, os consome a sede corrupta de continuar a ler. E continuarão, pois, ainda que de maneira subentendida, interessam - se pelo espetáculo que é o ser frio, petrificado, à espera da presa que insiste em se arriscar em direção à jaula.
Se quiserdes desfrutar da carne, eis o momento. O leitor se aproxima. Tuas garras seduzem . O coitado se espanta. Resiste. Receia. Digamos a ele mais sobre ti, fera feroz. Digamos , antes que corra! Não és senão o corriqueiro, o costumeiro, a carnicenta gordura das casas sujas. Do mundo sujo. Nada que não conhecemos. O íntimo que nos acompanha, dormente, inconveniente. Confidente. O discreto instinto animal pelo cheiro, silencioso. A nossa vergonha. Nos interessamos pelo mal!
Oh assombroso monstro! Tenhamos piedade! Ainda que não passemos de monstros... Ah, por Deus! Vire - se uns trinta graus à direita. Seu ângulo ficará melhor em meu texto. Que fazes? Que são esses teus olhos melancólicos, piedosos? Pretendes morrer de fome? Recomponha - se! Façamos nosso trabalho...
Tenho uma idéia fixa. Fixa como aquelas de Machado. Porém cruel . E como não me permitir ser cruel se escrevo? Pois eis a tal idéia- levemos nosso amigo por caminhos de flores para que desfrute da vida na véspera da morte. Mostramo- lo uma bela história romântica e o surpreendamos com a tragédia ao estilo de Shakespeare, o que lhe deu esplêndido resultado! Oh não... sejamos diretos. Sejamos simples, humildes em nossas fantasias. Vamos apenas nos alegrar com o banquete, ignorando o cozinhar. Ataque- o, fera feroz! Diga a este miserável sobre como o mundo é horrendo! Destrua as vísceras que permitem bater seu coração. Sufoque sua fluida respiração. Mostre - lhe sobre como o solo de terra vermelha na verdade é lixo. Como os Alpes na realidade são muralhas, como a justiça não é voz, é prisão, os maridos são assassinos dos sonhos, as crianças são matéria mal estruturada do que um dia serão apenas destroços de homens humilhados pelo cansaço. Eis a hora! Matemos! Está ela, nossa infeliz presa diante da sorte, sorte esta maldosa e traidora.
Que fazes? Porque não agiste no momento oportuno? Não foi assim que nos foi ensinado? O instinto animal! O determinismo! De que temos culpa?
Oh fera ferida! Que houveste contigo? Saíste traída pela profunda fome, pela profunda e vergonhosa sensibilidade. Não entregaste ao leitor um bom enredo, tampouco o bom findar. Não soubeste ter a competência necessária para lhes revelar a perversidade do mundo. Será talvez porque ele é somente rosas? Resististe. Receaste. E agora, ferida, não és mais feroz. É o bicho coitado, preso nas grades entregue à fome, entregue à sorte que não possui por ti qualquer piedade. O sábio observador o julgaste. O condenaste por tua promiscuidade. E tu, calando tua sangrenta voz se dera conta. Não há mais garganta. Não há mais garra. Não há mais passiva presa. Teu belo texto está sobre a mesa. Credes nele, no sábio leitor. Os olhos se desviam. A cadeira se arrasta. O livro se fecha. A lamparina se apaga. Não há mais fera nesta gélida escuridão.