Literatura de sovaco


Quando cursava a minha primeira faculdade incompleta, em meados dos 1970s, falava-se muito, nos botecos de Vila Isabel freqüentados por alunos da UERJ, em literatura de sovaco — o cara não lia xongas mas fazia questão de aparecer na frente dos colegas com um tijolão de autor cabeça debaixo do braço. E ao longo dos meses trocava mais de tijolão do que de camisa, erigindo um currículo de leitor dos mais invejáveis. Mas era quase sempre leitor de orelhas, narizes e contracapas, como pude comprovar mais de uma vez em nossos bate-papos etílico-literários. 

Em noite de muita birita e discussão ideológica numa daquelas abençoadas esquinas do velho Boulevard (havia então mais bares sórdidos), deparei-me com um que jurava ter lido Ulisses em apenas dez horas. Forte e decidido, ia de mesa em mesa vendendo o seu peixe e tirava a maior onda com aqueles que só conheciam de nome o romance de James Joyce. 

Ulisses é uma grande paródia!”, gritava o maioral, como um Buck Mulligan dos trópicos, espumando de chope e sapiência. 

Convencido de que o malandro dizia a verdade e que praticamente havia devorado o nosso dificílimo irlandês — mas não em dez horas; nisso eu tinha certeza que o cabotino exagerava —, pedi-lhe que me explicasse esse negócio de paródia. Ele não se intimidou com o vozeirão meio bêbado do futuro cronista e respondeu na bucha: 

“É a grande paródia dos tempos modernos. O lance de Leopold, o lance de Stephen Dedalus, o lance de Molly Bloom. Paródia pura.” 

Tinha muito lance nessa história, e achei que devia insistir: 

“Paródia como? Não li o livro mas ouvi dizer que ele tem uma certa relação com a Odisséia, de Homero. É paródia de Homero?” 

“Que Homero, meu chapa! O homem revolucionou a literatura universal, e você me aparece com esse papo de Homero?” 

Todos olharam para o meu lado, fechando o cerco intelectual. Calei o bico, vermelho como um dublinense depois de umas e outras, e afoguei minha vergonha num traçado de anis. Para dizer a verdade, vários traçados de anis, morrendo de inveja do outro. E olhem que na ocasião eu mesmo sobraçava um Hermann Broch em tradução francesa que entre nós só o jornalista Franklin de Oliveira e o imbatível Otto Maria Carpeaux tinham lido. Era currículo pra burro. 

O fato é que ainda levei dois ou três anos para descobrir que o cara não tinha lido droga nenhuma, só pelo lance de Homero. Mas naquela noite o ilustre sovaqueiro ganhou todo mundo no grito e ainda esticou com a melhor garota da turma.


[16.6.2007]